do lugar dos outros

do lugar dos outros

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008



SEM VITÓRIA, VIVES COMIGO.
pequena
e carregada.

Só lá fora, onde
as nossas almas ainda estão, na terra de ninguém,
é que se canta. Canta-se
no brilho
daquilo que passou ao nosso lado.

Nem nuvens, nem estrelas – nós
não olhamos para cima.

Chega-te mais, anda:
para que não sopre duas vezes o vento
através da nossa casa aberta.


Paul Celan – A Morte é uma Flor

domingo, 28 de dezembro de 2008



NEVE

Oiço-te na extensão do sono
com dificuldade. O inverno, a neve
que nele havia, arde.
Era tão branco tudo: astros,
árvores, até as aves
que se abrigavam não sei
em que alpendres. E chamavam,
chamavam da brancura da neve.
Nenhum muro, nenhuma porta,
só a voz que chamava, doce
e pequena voz, a querer
partilhar comigo
o inverno, a neve, o mundo
amanhecendo, anoitecendo, branco.


Eugénio de Andrade – Os Sulcos da Sede

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

«Eram tão lindos, tão suaves os dias femininos ao teu lado. Nesse teu rosto moreno, que me é agora estrangeiro e onde longamente batem as pestanas desses teus embaraços que bem conheço, que são silêncios a eternizar-se entre nós, movem-se sombras, ideias furtivas que não consigo captar.
Quando amassávamos o barro vermelho e ecoavam na tarde sons de lume e o vento cheirava a pão, quando olhávamos juntos, do nosso quarto andar, as estradas cor-de-rosa do crepúsculo, parecia, parecia apenas, que não havia segredos entre nós.»

Violeta e a Noite, de Urbano Tavares Rodrigues

domingo, 14 de dezembro de 2008

na suite EPICURE

Tu disseste para eu guardar o silêncio neste quarto. Para que nada dissesse, nem o teu nome. O teu corpo ondulava e eu aceitei a ausência. Disseste para eu nada pedir, para não nomear, não ter nenhuma palavra, nem exclamação, nem sorrisos, para não estar morta também. Para te responder com as mãos, silenciosas, os dedos a baterem-te como a chuva, tão de leve.

Estás suspenso, leve e suspenso e quente, portanto vivo, que surpresa! Só te envolves no berço, sem palavras, como antes delas, com o rosto amado a devolver-te um sinal de reconhecimento. Voltas a fechar os olhos, aninhas-te nos meus braços como se não me visses nunca, como se eu não existisse fora desse abraço por dentro. O meu cheiro como uma palavra acariciando a criança em ti, toda, e a curva da nuca abandonada. O peso tímido da tua cabeça a furar-me a pele, a quebrar-me o peito. Mordes a memória do leite, mexes os lábios, dói-me a secura. Não digo nada, o queixume é já desejo. Tem de ser plano e eterno este tempo, como se a morte pudesse roubá-lo se o dissesse. Não me pedes nada, e nem ousas a violência.

Ocultas tudo para que seja como antes do sono, um mergulho lento, desmembrado, com a aprovação de todos. Os lábios são doces, não procuram, conhecem a felicidade, provam com a língua, provam mais, redondos, enrolados, enormes como o quarto, com a cama que se afunda e nos leva, líquidos, desfeitos um no outro, numa celebração comum, silenciosa, não nomeada. Um abraço sem gestos, só um equilíbrio ténue, frágil.

Escorregamos sem esforço, não sei onde caímos, é a tua memória que nos guia, é o meu silêncio, todo o consentimento e o dom do teu acolhimento para que tudo aconteça longe daqui, sem eu nunca saber onde me levas e vou.
(...)

Devia contentar-me de ter areia escondida
nas pregas da carne e de o não saber.
À noite, passo a mão espalmada por toda a cama
e encontro vento e mar no meu lençol.
sempre sorrio desse facto.
Não consigo ainda deitar-me e ficar feliz
sabendo isto tudo.


Um adeus perfeito – Lídia Martinez

sábado, 13 de dezembro de 2008



(…)
O abraço entre a flor e a borboleta é um abraço
doce como o néctar, mas bem curto e breve.
A flor, quieta, espera a chegada da borboleta
e deixa-se abraçar.
A borboleta passa rasando a flor,
acaricia-lhe as pétalas e segue.

(…)
A linguagem dos abraços
não contém quaisquer palavras,
nem é vazia de sentido.
Acima de tudo, o que nós desejamos nela,
é que o nosso abraço seja eterno e infinito.


Michal Snunit – Vem e Abraça-me

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008



DIÁRIO À NOITE SUPOSTA

(Primeiro dia)

Lembro-me bem: este poema começava a falar de uma estrela.
Era uma estrela no início da imagem. Uma estrela a fugir-me da possibilidade do verso, a fugir-me do íntimo conforto em que a tinha. Estrela a ferir-se nas mãos, a ferir-me nos olhos, estrela.

(Primeiro dia)

Disseste: vou escrever um livro para te esquecer.
Para te encerrar como um assunto.
Para te matar.

Lembro-me bem: disseste exactamente o contrário
mas hoje custa-me acreditar nisso.

Disseste que nele contarias o nosso amor
porque a literatura tem esta presunção de eternidade
e depois deixaste-me e eu já não me lembro bem por quê.

(Primeiro dia)

Eu não tinha estrutura, não tinha claridade.
Eu não tinha holofotes que chegassem, braços que chegassem.

Eu não tinha luz.

Uma estrela, já se sabe, precisa de luz. Alimenta-se da sua circunferência,
do seu tom periférico. Uma estrela precisa de iluminar.
Foi isso. Foi a minha noite. Foi a minha falta de jeito.

(Primeiro dia)

Disseste: Vou escrever um livro para continuar.
Para continuar sem ti.
Foi isso que disseste?

(Primeiro dia)

O que eu queria mesmo era escrever para me salvar.
Para não ter medo.
Para te perder melhor.


Filipa Leal – O Problema de Ser Norte

domingo, 7 de dezembro de 2008


Lembro-te: alguém no amor precisa de estar nu para mostrar ao outro que está demasiado vestido.


Eduardo White – Dos limões amarelos do falo às laranjas vermelhas da vulva

domingo, 30 de novembro de 2008

“O encontro com o mundo índio não é hoje um luxo. Tornou-se uma necessidade para quem quer compreender o que se passa no mundo moderno. Não basta porém compreender; trata-se de tentar ir até ao fim de todas as galerias obscuras, de procurar abrir algumas portas – quer dizer, no fundo, tentar sobreviver. O nosso universo de cimento e de ramificações eléctricas não é simples. Quanto mais se pretende explicar, mais ele se nos escapa. Viver por dentro, hermeticamente fechado, seguindo os impulsos mecânicos, sem procurar trespassar estas muralhas e estes tectos, é mais do que inconsciência; é expormo-nos ao perigo de sermos pervertidos, mortos, tragados. Sabemos hoje que não há verdades; apenas há explosões, metamorfoses, dúvidas. Bem entendido, queremos abalar. Mas para onde? Todos os caminhos são parecidos, todos são um regresso ao próprio indivíduo. É pois preciso procurar outras viagens.”

(…)

“ Seria preciso falar desta experiência como se fala, por exemplo, do mar. O mar estava presente, todos os dias com ele convivíamos, víamo-lo, pensávamos nele, mas não sabíamos o que queria dizer. O mar, porém, sabia. Era ele que cercava as cidades, era ele que organizava os pensamentos dos homens, que regulava as suas músicas, os seus quadros e os seus poemas. E não o contrário. Como imaginar uma coisa destas? Quando a gente se servia das palavras da linguagem, e na folha branca as alinhava, não nos dávamos conta de que alinhávamos conchas. E o que um dia se descobre, sem se dar por isso, só por se estar sentado num rochedo diante do mar, é que a experiência dos homens está incluída na experiência do universo. E isto, verdadeiramente, é terrífico, e ao mesmo tempo é aprazível, porque nessa altura muitas palavras surgem, muitas palavras desabam. Quer isto dizer que a linguagem é uma expressão do universo modificada pela boca dos homens, uma linguagem por assim dizer interpretada, e cujo original há-de sempre ficar sem tradução.”

(…)


ÍNDIO BRANCO – J.M.G. Le Clézio

domingo, 23 de novembro de 2008



Da abertura:

“Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo o ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão do mundo. Isso faz da leitura sempre uma re-leitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer, como alguém vive, com quem con-vive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação.
(…)

Do capítulo 2 – nós somos águias!

(…)

“Era uma vez, um camponês que foi à floresta vizinha, apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar num filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rei/a rainha de todos os pássaros.
Depois de cinco anos este homem recebeu em sua casa a visita de um naturista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturista:
- Esse pássaro aí não é uma galinha. É uma águia.
- De facto, disse o camponês. É águia. Mas eu criei-a como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
- Não, retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia este coração a fará um dia voar às alturas.
- Não, não, insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:
- Já que você de facto é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!
A águia ficou sentada sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá em baixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas.
O camponês comentou:
- Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
- Não, tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no tecto da casa. Sussurrou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá em baixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à carga:
- Eu havia-lhe dito, ela virou galinha!
- Não, respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas.
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe!
A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direcção do sol, para que seus olhos pudessem se encher da claridade solar e da vastidão do horizonte.
Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau, kau das águias e ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez mais alto. Voou… voou… até confundir-se com o azul do firmamento…
(…)

Leonardo Boff – A águia e a galinha (uma metáfora da condição humana)

sexta-feira, 21 de novembro de 2008



ANÚNCIO

A expectativa de me fugir um breve instante de respiração. Surpreender-me num ritmo acelerado de corrida de bicicletas perante um coração fraco. Varrer-me o vento na sua simplicidade de falta de palavras. A expectativa desse mesmo instante. O deserto quase-azul escuro dos teus olhos semicerrados. Essa estrada que me espera durante as próximas horas de existência com as canções de um cristalino zumbir de abelhas ao vento. A crina de um incidente. A tua presença absoluta num espaço contíguo. A saída de emergência de uma distância inesgotada diante de uma pedra esculpida com a precisão de segundos de erosão, imensamente terna e dolorosa. O equilíbrio de um corpo numa mente à beira da loucura de ti. Saber os teus dois nomes com a destreza de uma agulha a ferir um braço gentil. O poema, o último de todos, dentro desse sangue adocicado de tardes de Abril. O reencontro dos teus lábios de pássaros verdes. E estas imagens, sobre, sob a retina de um quotidiano laboriosamente impensado sobre a tua ausência presente ou um carrossel de pó a anunciar a nossa chegada.


MANUAL DE COMO DESCALÇAR SABRINAS A MENINAS

Quando descalçares sabrinas terá de ser com procedimentos cinderélicos. Terás de amar os pés, mesmo que partidos ao meio, na destruição dramática dos seus vinte e seis ossos. Todos os pés de vento. Toda a sua minuciosa anatomia de quem quer andar como quem canta. Prever o mais breve e inútil movimento no sistema esquelético. Encontrar-lhe os lírios nas sequelas dos músculos. Dar-lhes corda. Pô-los a tocar sob ameaça de tempestade. Sentar-te na margem dos rios sinoviais e atirar-lhes pedras. Pô-los a pensar sobre os caminhos – dar-lhes caminhos. Encontrar-lhes as faces e beijá-las nas suas destrezas. Retirar com cuidado e deixar pousar o pé sobre o chão.


Ana Salomé - Anáfora

quinta-feira, 13 de novembro de 2008



Minha alma ergueu-se para além de ti...

Tive a ânsia de mais alto

- abri as asas, parti!


Poemas – Judith Teixeira

sábado, 8 de novembro de 2008

Nas palavras de madrugar

há um chão de terras prenhes, roubado à pedra que o tempo mastigou ajudado pelo suor dos homens;

um tempo de sacrifícios indizíveis pela luz ténue das palavras a que nos agarramos, na esperança lícita de interpretar esse tempo que apenas se percebe a espaços, escutando os diálogos entre as brumas matinais e os primeiros raios de sol, ou à tardinha, entre os salgueiros do rio e as oliveiras do monte;

esse monte acariciado pelos dedos do gigante-criador, por onde passam, à ida e à vinda, o ranger das botas e o bater das socas, dos homens e das mulheres que todos os dias sobem e descem o altar, para se darem a essa troca desigual do salgado suor pela vida, do envelhecimento pela recriação dos mistérios do xisto, como se de um sacrifício divino e consentido se tratasse – eis a oração:

às seis e meia da manhã abre-se uma janela, devagarinho, para não inquietar os ruídos de madrugar – os tentilhões e os melros não dão conta e continuam a conversa firme, pardais e tordos cumprimentam-se de galho para galho, no fio telefónico, à escuta de outros segredos, descobre-nos uma pega rabuda, que em silêncio exibe o peito amarelo da sua vaidade;

no entremeio deste olhar, já longe o quanto baste para se perceberem as cores dos lenços e as rugas do tempo, por entre as badaladas da torre sineira, o eco da reza diária traz-nos o caminhar das botas encardidas pelo pó da terra e dos socos esbotenados pela arrogância da pedra - o Alcides, o Balela, o Hernâni e o Moisés, a Rosa de Fátima, a Clotilde, a Aninhas e a Rosinda - , mais atrás, pachorrento mas de cauda em riste, vai o “Perdido” – o cão que alguém deixou, vai para um ror de anos, na borda do ribeiro que passa ao laranjal -, vai como quem faz parte da roga, muito senhor do seu nariz, mas com o faro posto nas côdeas ou nos ossos que restem do “presigo” do pessoal;

é fresco o olhar das manhãs do mês de Maio, traz aromas da terra, já penteada por novos bardos que vestem de verde as velhas cepas, que passam Outonos e Invernos à conversa com as geadas e com os muros húmidos de xisto – pedras acomodadas entre si como laçadas de um pano de renda -,esse trabalho hercúleo da paciência artística, emergente da necessidade de roubar à montanha mais duas leiras de pedra esmagada pelos braços desse tempo;

inspira-se este ar que vem do azul e se mistura com o bafo da inspiração dos montes, que nos entontece com a mesma intensidade com que em Setembro, depois do rio de prata dar lugar ao espelho de águas adormecidas, nos embebeda o mosto que sobe do rio pela calada da noite, embalado pela sinfonia das rãs e das cigarras, enquanto as botas e os socos, manchados pelo sangue da vinha, repousam na soleira do descanso, à espera que o rosário volte ao princípio;

onde os deuses se encontram

há um olhar sobre a pele dos montes, acariciado pela brisa do mosto; mãos nos bolsos e retina saltitante, pousando aqui e ali, ao ritmo dos pensamentos, como se de uma pontuação inquieta se tratasse, à procura da sinfonia que evola da caligrafia dos corpos deitados em ambas as margens, admirando a erecção dos ciprestes ou a nudez dos chorões e dos juncais desenhados na água, onde passeiam as nuvens e as sombras do senado das cepas;

entretanto, a respiração dos sexos ecoa por entre o ruído dos silêncios, escorrentes das coxas e dos seios adormecidos pelo encanto da serpente dourada que desliza entre o xisto esculpido pelo cinzel do tempo, paulatinamente humedecido pelo suor dos homens;

na rumorosa contemplação, ele, ainda de mãos nos bolsos, sente o latejar do sangue a percorrer as artérias da memória que sustenta a existência dos homens que sempre regressam ao xisto das convexas seduções, aconchegados pela manta dos frutos;
imóvel, o olhar lê as palavras que renascem do novo verde, disseminadas pelas luminosidades emergentes da emoção desse abraço:

entretanto, nas encostas de corpos, desenha-se a pauta onde se reescreve a melodia das escrituras do fragmento planetário em que os deuses se encontram, para se embriagarem com cálices de sol.


(parece-nos irresistível este parêntesis - por debaixo deste nosso alpendre há uma ramada de sombras, em cujo arame dois pardais, ainda jovens, se debicam carinhosamente e pipilam qualquer coisa do tipo:
- piu, piu-piu, piriripipiu.
- piu-piu, piriritriririri piu-
o que, traduzido à letra, deverá querer dizer:
- ó meu amor…
- diz, amor meu…)

Agora, Nós – josé braga-amaral

domingo, 2 de novembro de 2008

«Ao romper do dia, apercebeu-se do que a rodeava, do corpo junto do seu; ele dormia, ou pretendia que ela o imaginasse. Obsidiana aconchegou-o no conforto das roupas. Quando acordou, estava só. Estendeu o braço para o lugar vazio e voltou a afundar-se num sono profundo, como se tivesse caído num abismo. Mais tarde, muito tempo depois, anos talvez, afirmaria para consigo deveria ter morrido naquela noite; não a orientaria, nesse aspecto, o negativismo, muito pelo contrário: sublimado o desejo pela ternura, poderia ter evitado a paixão para sempre.»

Obsidiana – Filomena Cabral

sábado, 18 de outubro de 2008


é tão breve o silêncio quando dizer mais era urgente,
tão frágil o fogo das mãos sobre a pele,
tão lúcido o pensamento quando dizer tudo é pouco.


UM CORPO (SUB)EXPOSTO – Isabel Mendes Ferreira



sábado, 4 de outubro de 2008




Com poucas palavras, Silverstein fala da relação entre o homem e a natureza, onde uma árvore oferece tudo a um menino que a deixa de lado ao crescer, ao mesmo tempo que se torna um homem egoísta. Mas para agradar ao menino que ama, a generosidade desta árvore não tem fim – ainda que isto signifique a sua própria destruição.


A Árvore Generosa – Shel Silverstein

domingo, 28 de setembro de 2008



SONO


adormeci

de cabeça

traída

e acordei

com o coração

magoado


só há uma

palavra

luminosa

que se deixa

em silêncio

o grito


no outono o vento

varre as páginas

aos pés de um livro


as gaivotas

são gavetas

de abrir e fechar

as ondas do mar


o amor é passar

a vida inteira

a amar-te

do outro lado

do mundo

e cara a cara

já não ter força

para dizer

amo-te



Só cá vim ver o sol – Joaquim Castro Caldas


quarta-feira, 24 de setembro de 2008



casa

durante a noite
a casa geme agita-se aquece e arrefece
no interior frio do olho da tua sombra sentada
na cadeira aparentemente vazia

esperas acordado sem sono
que a temperatura da casa funda
com a temperatura incerta do mundo
depois
escreves exactamente isto: o horror dos dias
secou contra os dentes – e rouco
dobrado para dentro do teu próprio pensamento
ferido
atravessas as sílabas diáfanas do poema

levantas-te tarde
atordoado
para extinguires o lume ateado
junto à memória da casa – respiras fundo
para que o gelo derreta e afogue
a vulgar noite do mundo

olhas-te no espelho
atribuis-te um nome e um corpo um gesto
dormes
com a árvore de saliva das ilhas – com o vento
que arrasta consigo esta chuva de fósforo e
estes presságios de tranquilos ossos


Horto de Incêndio – Al Berto

domingo, 21 de setembro de 2008

«Deixa-me entrar na tua casa, sentar no teu sofá e chorar dias seguidos, sem parar, sem ter que parar, sem limpar as lágrimas alguém pode ver, sem disfarçar a dor, sem medo de ficar com os olhos inchados, o rosto disforme. Não tens que compreender nem te afligir. Sou só eu a ser aquilo que sou em certos dias da vida – inconsolável. Não quero o teu lenço, obrigada, nem o teu ombro, nem água, apenas chorar sentada no teu sofá, chorar no teu cenário, manchar a tua normalidade, gritar dentro dela, fazê-la tremer um pouco. Chorar também por ti que não choras e é preciso de vez em quando. Nem te emocionas, apenas te ris e te preocupas e és malevolamente bom».

Histórias Improváveis – Ângela Leite

terça-feira, 16 de setembro de 2008

SÚPLICA

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti, como de mim.

Perde-se a vida, a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria…
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz, seria
Matar a sede com água salgada.


Câmara Ardente – Miguel Torga

terça-feira, 2 de setembro de 2008

(…)

Notável é o estado do que não sente a tentação daquilo que não faz; não o estado do que é tentado e renuncia. Em termos realistas, o primeiro é a paz, o segundo é a tortura. Os heróis podem falar à vontade. Sofrer é uma estupidez.

(…)

Começo a fazer poemas quando a partida está perdida. Nunca se viu que um poema tenha modificado as coisas.

(…)

Tentação do escritor

Ter escrito qualquer coisa que te deixe como um fuzil que acaba de ser disparado, ainda abalado e quente, vazio de ti próprio, mas também aquilo que suspeitas e supões, e os sobressaltos, os fantasmas, o inconsciente – tê-lo feito à custa de uma longa tensão, com uma prudência feita de dias, tremores, bruscas descobertas, e fracasso, e centralizando a vida neste ponto – dar-se conta de que tudo isto nada é se um sinal humano, uma palavra, uma presença não o acolhe, não o aquece – e morrer de frio – falar no deserto – estar só, noite e dia, como um morto.

(…)


Ofício de Viver – Cesare Pavese

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

A diáfana sombra das nuvens passando
sobre a brancura das casas: é a beleza
das desaparições. Todo o instante
é uma pequena cruz do Absoluto.


Livro das Esmolas – Adelino Ínsua

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

A RODA

No Inverno desejamos a Primavera,
E na Primavera invocamos o Verão,
E quando ressoam as abundantes sebes
Declaramos que o Inverno é o melhor;
Depois nada há de bom
Porque a primavera não chegou –
Não sabemos que essa inquietude que nosso sangue perturba
É apenas a sua nostalgia do túmulo.

Uma Antologia – W.B.Yeats

quinta-feira, 7 de agosto de 2008



(…)
Ou, nos jardins do verão, o muro quieto na impossibilidade, externo a uma espessura de linhas invisíveis, uma espessura dotada de melancolia.

Ou, mais ainda, no teu casaco abandonado e entreaberto, ou seja, numa forma que descreve o teu desaparecimento.

Esta perplexidade é a consciência. O medo faz de pastor, porém não sabes mais de ti do que um animal absorto sobre a água.


Descrição da Mentira – António Gamoneda

quarta-feira, 23 de julho de 2008



(…)
Paris nunca se acaba é uma revisão irónica dos tempos de aprendizagem literária do narrador na Paris dos anos setenta. Fundindo magistralmente autobiografia, ficção e ensaio, vai-nos contando a aventura em que se envolveu quando, numas águas furtadas de Paris, redigiu o seu primeiro livro. E revela-nos, por exemplo, como em parte escreveu esse livro graças aos conselhos para escrever um romance que lhe deu, resumidos numa folha simples, Marguerite Duras, a sua invulgar senhoria.
Paris nunca se acaba é também a história de como, na sua juventude, o narrador se radicou nessa cidade para imitar literalmente a vida boémia de escritor principiante de Hemingway, que ali foi “muito pobre e muito feliz”, e como, pelo contrário, o narrador foi muito pobre e muito infeliz.
(…)


Paris Nunca se Acaba – Enrique Vila-Matas

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Observas o rosto hirto na vidraça
e respirando fundo sabes: a luz
alonga os traços como um remorso –
porque tudo é nosso e doutrem.
Roubas e roubam-te, do mais
à margem te mantêm, ou a vau.
Desmunido. Que cem anos
não confortam a cova de um dente,
nem refreiam o susto de quando
o silêncio bate portas – é coisa
pública. Veja-se o caso das mãos:
cinco dedos são poucos. Uma
redige o elo de solidão e já outra
congela o sangue nas torneiras.

António Cabrita – Carta de Ventos e Naufrágios

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Porém, o que dói é a ausência de dor na face dos
mortos: hirtos na fina porcelana do seu
rosto, rígidos no vento da sua pedra.
Buracos negros as suas pálpebras ante o
choro das mulheres, a devastação dos filhos.
Sentissem eles as pulsações dos ventos,
a inquietação dos cães, a ruína dos
canteiros, o abandono dos trigos e das vinhas!
Se eles soubessem quanto apascentamos
a memória da sua transumância pelos
lugares que pisaram, e como se lhes
agiganta a cera das figuras, depois da partida
dos seus corpos minguados!
Mas nenhum bálsamo nos dão em troca
de tudo o que lhes damos; tudo se perde
no gesto imóvel, para sempre desenhado.
Esse silêncio compulsivo é o justo preço a pagar
pela mais pura e absurda decantação da alma.

O nome dos Mortos seguido de Biografia das Sombras – Fernando de Castro Branco

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Quais são as fronteiras entre a liberdade e a dependência? De que material erótico se faz a inocência? E entre o sonho e o tempo, entre o real e o quotidiano que o transcende, que teia se pratica? De que modo os símbolos se reflectem e se incluem no espelho das coisas?

Boi Vermelho - Catarina Fonseca

domingo, 22 de junho de 2008

«Sonhamos enquanto vemos. Vemos enquanto sonhamos. Mas não estaremos sempre no mesmo lusco-fusco? E não é apenas de noite que o sol atravessa a Terra para nos iluminar? E não transpõem os demónios todos os umbrais da luminosidade?»

Botho Strauss – Fragmentos da Incompreensão

terça-feira, 17 de junho de 2008

424 Quando estiveres cansado de olhar uma flor, uma criança, uma pedra, quando estiveres cansado ou distraído de ouvir um pássaro a explicar o ser, quando te não intrigar o existirem coisas e numa noite de céu limpo nenhuma estrela te dirigir a palavra, quando estiveres farto de saberes que existes e não souberes que existes, quando não reparares que nunca reparaste no azul do mar, quando estiveres farto de querer saber o que nunca saberás, se nunca o amanhecer amanheceu em ti ou já não, se nunca amaste a luz e só o que ela ilumina, se nunca nasceste por ti e não apenas pelos que te fizeram nascer, se nunca soubeste que existias mas apenas o que exististe com esse existir, quando, se -, porque temes então a morte, se já estás morto?

554 Mas a tua estrela pode não estar no céu. Põe-na lá.


Pensar - Vergílio Ferreira

sexta-feira, 13 de junho de 2008



NÃO DIZIA PALAVRAS

Não dizia palavras.
Aproximava apenas um corpo interrogante,
Porque ignorava que o desejo é uma pergunta
Cuja resposta não existe,
Uma folha cujo ramo não existe,
Um mundo cujo céu não existe.

Entre os ossos a angústia abre caminho,
Ergue-se pelas veias
Até abrir na pele
Jorros de sonho
Feitos carne interrogando as nuvens.

Um contacto ao passar,
Um fugidio olhar no meio de sombras,
Bastam para que o corpo se abra em dois,
Ávido de receber em si mesmo
Outro corpo que sonhe;
Metade e metade, sonho e sonho, carne e carne,
Iguais em figura, iguais em amor, iguais em desejo.

Embora seja só uma esperança,
Porque o desejo é uma pergunta cuja resposta ninguém sabe.


Antologia Poética – Luís Cernuda

quinta-feira, 5 de junho de 2008


ENCOMENDA

Desejo uma fotografia
como esta – o senhor vê? – como esta:
em que para sempre me ria
com um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia…
Não… Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia


Antologia Poética – Cecília Meireles

sábado, 31 de maio de 2008

Um lugar não é apenas um vestígio de uma antiga sombra
que caiu no nosso olhar. O que agora se vê, se esquece, e longe
fica, atinge a margem mais secreta, é uma metamorfose extrema, dissipante
do tempo e da penumbra, límpido refúgio a que se assoma insuspeito e perdido.

É então que a noite vem como um destino

as mãos cansadas estremecem.


Máquina de Relâmpagos – Jorge Velhote

quarta-feira, 28 de maio de 2008

(…)
Quando eu te via vir ao longe, a serra até tremia. Os calhaus fugiam-me à frente dos pés com as minhas corridas, rebolavam que era uma graça, e as silvas nem me tocavam. Se era tarde, eu nem dava pelo sol se pôr. Eras tu que me alumiavas. Tu andavas depressa, mas eu ainda achava que era devagar. Aparecias aqui, sumias-te ali, e de repente dávamos cara com cara.
Tu tão alto, eu tão baixinha! Às vezes ficávamos só a olhar um para o outro. E eu virava a cara. As mulheres sentem tanto, tanto! Quando elas viram a cara é quando têm mais que dizer.

(…)

Solidão - Irene Lisboa

domingo, 25 de maio de 2008

(…)

É claro que podia não acontecer. Uma coisa, logo que conhecida, jamais poderá ser desconhecida. Apenas poderá ser esquecida. E, na medida em que domina o tempo, enquanto puder ser lembrada, indicará o futuro. Compreendo agora que embora fique sentada no meu quarto, a envelhecer, muito tristemente, sozinha, tenho que viver com esse conhecimento. O telefone pode tocar, esta noite, ou amanhã: já não importa.

(…)

Olhem para mim – Anita Brookner

terça-feira, 13 de maio de 2008

Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.


O Encantador de Palavras – Manoel de Barros

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Num bar, um homem mata uma mulher. Mas este gesto só existe pelo fascínio que exerce noutro homem e noutra mulher que nem sequer testemunharam directamente e cujo significado não alcançam senão talvez inventando-o através da estranha embriaguez que a partir de então se apodera deles. Arrancados por aquele grito de agonia à ordem quotidiana, a essa vida «tranquila» onde já não há lugar para a esperança, o homem e a mulher encontram-se dia após dia no bar onde tudo se passou. Falam, imaginam que essa mulher quis ser morta pelo homem que amava, e o sentimento que nasce entre eles reencontra, assume esse desejo. Talvez venham a reviver a mesma história de morte e amor. Talvez… mas nem mesmo o romancista tem a certeza. Quem pode dar um nome ao que se passou entre esses desconhecidos, ao que se passa agora entre Anne Desbaresdes e Chauvin? Quem pode saber a forma que o destino dará a essa cumplicidade indecifrável? Talvez nem tenham outra história do que a de ter, por um instante, trocado essas palavras, posto as mãos uma sobre a outra, encostado as suas bocas uma única vez. Tudo está suspenso na expectativa de um acontecimento que não chega, de um acontecimento inimaginável. Tudo se verga ao peso de uma paixão que não sai de si própria, que não sabe sequer o seu nome.

Gaetan Picon (Mercure de France)

Moderato Cantabile – Marguerite Duras

domingo, 4 de maio de 2008


Y.K.CENTENO
(Portugal, 1940)

O que fazem as mães?
abrem caminho
mas abrem caminho
cegamente
não conhecem o túnel
o destino
a sombra que as enreda
mais à frente

Perto da Terra, Presença, Lisboa, 1974

quinta-feira, 1 de maio de 2008





















(…)

Mas a vida é assim…
Esta tristeza no mundo, este tédio e esta infelicidade podem mudar se as pessoas souberem que estão a pedir o impossível.
Não peça o impossível
Descubra a lei da existência e siga-a.

(…)

Este mundo é só uma peregrinação – de grande significado, mas não é um sítio para se pertencer, não é um sítio para se fazer parte. Seja como uma folha de lótus.

(…)

Uma pessoa que sabe estar só nunca está isolada. Só as pessoas que não sabem estar sós é que se sentem isoladas.

(…)

Amor, Liberdade e Solidão - OSHO

quinta-feira, 24 de abril de 2008






Às vezes
perigosamente
as veias coagulam
Não percebem:
viver é uma hemorragia calculada


Fibrilações - Ana Hatherly

domingo, 20 de abril de 2008






















MULHERES AMALDIÇOADAS

Como gado pensativo sobre a areia deitadas
Dirigem o olhar para o horizonte dos mares
Seus pés se procuram, suas mãos se aproximam
Doces langores as percorrem e calafrios amargos

Umas amam as longas confidências do coração
No fundo dos bosques onde marulham os rios
Vão desfolhando o amor das infâncias receosas
Entalham a carnação verde dos arbustos jovens

Outras, como irmãs, caminham lentas e graves
Entre rochedos repletos de aparições
Onde Santo Antão viu surgir como lavas
Os seios nus e purpúreos das suas tentações

Outras há que no côncavo mundo dos velhos antros
Pagãos iluminados por resinas que se liquificam
Te chamam para que acalmes suas febres uivantes,
Ó Baco, mestre bálsamo dos remorsos primitivos.

Outras unem a espuma dos prazeres à dor das lágrimas,
Nos bosques sombrios e nas noites solstícias,
Trazem vergastas escondidas sob as longas vestes
Ostentam no peito as insígnias dos seus suplícios

Virgens, demónios, monstros e mártires – dizem.
Sois, de facto, o desprezo forte da realidade visível,
Procurais o infinito, devotas e sátiros,
ora no meio do choro, ora no meio dos gritos

Vós que no vosso inferno minh´alma seguiu,
Pobres irmãs, amo-vos tanto como vos lamento,
Tendes dores sem excesso, uma sede insaciável
E corações repletos de um amor intenso

As Flores do Mal – Charles Baudelaire

sexta-feira, 18 de abril de 2008























“ Saio deste livro de Rita Cerdeiros com a sensação de que estes nomes cruzados e estes episódios em tessitura mantêm uma dolorosa e sensível relação com a vida. Com a vida de todos nós. Quem lê e quem ama o que lê tem sempre a tineta de procurar referências de autores, de estabelecer paralelismos comparativos entre este e aquele. Em Rita Cerdeiros, neste livro de Rita Cerdeiros, estão, subjacentes, um conhecimento cultural e uma sabedoria das coisas que têm de advir, necessariamente, de encontros e correspondências com a dor e com o júbilo. Todas as personagens de “As Hortênsias Brancas e as Bicicletas” relevam de contradições por vezes dilacerantes, mas, sem excepção, há nelas uma nota comum: a procura da felicidade.
Com extremo pudor, Rita Cerdeiros não declama essa procura: sugere-a; no-lo diz que a condição humana tem como objectivo ser feliz e que o seu trajecto é a história infindável, e nunca cumprida, desse desejo.
O eu permanentemente exposto neste belíssimo romance não constitui um mero estratagema literário; é, ceio, a possibilidade oferecida de o texto não tombar num fácil sentimentalismo derrotista. Será um livro triste? Talvez. E nesse registo está, eventualmente, a sua componente mais importante. Melhor do que ninguém disse-o, num verso admirável, Carlos de Oliveira: “A tristeza é o vinho da vingança.” Rita Cerdeiros não opõe, umas contra as outras, as personagens e os sentimentos que de elas evolam e evoluem. O texto fala, mansamente, discretamente, em surdina, nas razões poderosas do coração, nas tremendas variações de sentido, num universo de imagens forçosamente indiciário de certos extractos sociais.
Gosto muito deste livro. Pelos motivos aduzidos e, também, porque segue o princípio estético que recusa a arte como instrumento de piedade ou de clemência. Porque recusa a arte, neste caso a literatura, como um objecto útil com objectivos de utilidade. São retratos interiores, distorcidos e erectos, claros e opacos, que funcionam como medianeiros de um particular sentido concreto.
Depois, “As Hortênsias Brancas e as Bicicletas” tratam o leitor como adulto lúcido e sensível. Quero dizer: fornece ao leitor a ampla possibilidade de, ele próprio, reconstruir o texto. Porque cada leitor e todos os leitores estão nos livros. Nos livros de qualidade, como é o caso.”
Baptista-Bastos
As Hortênsias Brancas e as Bicicletas - Rita Cerdeiros

segunda-feira, 14 de abril de 2008






















O amor eterno

É quando a morte salta de dentro da árvore,
como o pássaro inesperado da noite, que recordas
o que viveste. Não te prendas à respiração.
ao contar do pulso, às pequenas matemáticas de que
o tempo de homem depende. A memória que deixares
está para além dele; e algo de ti permanecerá,
mesmo que o não saibas, nalgum canto secreto,
no riso ou no choro de quem te lembrar.

Ao teu lado, enquanto as raízes da árvore
tomam conta do teu peito, todas as sombras
se juntam. No entanto, é com essa que te amou,
ou com o riso límpido que te inundava os
ouvidos, com a primeira luz de uma antiga
manhã, que podes vencer a noite. Mesmo
que os teus olhos se fechem, ou que uma
súbita brancura se apodere da tua alma.

Ela seguir-te-á no corredor de areia onde
as últimas gaivotas esperam a maré; e
diz-te: «porque perdeste a tua vida? A
que inúteis deveres cedeste a felicidade? Por
que não me seguiste, até ao leito do rio
onde os amantes se juntam?» a ausência das
suas mãos desce pelo teu corpo, nesse
último instante, como um áspero vento.

Cartografia de Emoções - Nuno Júdice

quarta-feira, 9 de abril de 2008






















Estou dentro de paredes brancas.
Quatro paredes: a minha cela,
O frio, a solidão e o meu catre.
A luz entra sempre de noite.

Não tinha nada donde vim. Aqui não encontrei
O que tive e a cadeira não serve o meu repouso.
Ainda não há lugar no mundo onde possa sossegar de tu não seres
O vazio que persiste à minha beira.

Tenho um pequeno sonho de uma janela para abrir:
E que paisagem não seria estar feliz!


Explicação das Árvores e de Outros Animais - Daniel Faria

sábado, 5 de abril de 2008



Qual é o preço do afecto e com que moeda devemos pagá-lo? O que é mais duro, uma carícia ou termos de nos esvaziar para a conseguir? Ao longo do tempo, acabamos inevitavelmente por descobrir que algumas moedas pesam muito mais do que o que nos deram em troca delas. Perder na troca e habituar-se a essa perda é a lição que Martina Iranco, a protagonista deste romance, aprende desde a infância.
(…)
Uma mulher nua fala da nossa urgência vital para conseguir o afecto, de como aprendemos a conquistá-lo e de como nos podemos perder à sua procura; fala da pele como lugar onde se escreve o próprio desenraizamento, de nos apercebermos de que, afinal, brincar às escondidas é uma forma de viver com as mãos vazias.
(…)

Uma Mulher Nua – Lola Beccaria

quinta-feira, 27 de março de 2008

















VIDA ESCURA

Tu nunca entenderás o que se passa
Dentro de mim… nem queiras entender!...
Se a formosura é toda a tua graça,
Sê formosa, que é esse o teu dever.

Não és feliz? Não sei o que te faça!
Mas que pensarás tu, se te disser
Que eu sou mais venturoso na desgraça
Do que tu na alegria o podes ser?!

Que nos importa estar na vida sós,
Mercê da falha de uma criatura?!
O que é preciso é não falharmos nós.

Não tentes entender-me o coração…
Só podem ver na minha vida escura
Olhos acostumados à paixão.


Fausto Guedes Teixeira – O Meu Livro (2ª parte)

domingo, 23 de março de 2008

Princípios necessários para calar

1. Só devemos deixar de estar calados quando temos alguma coisa a dizer que valha mais do que o silêncio.
(…)
3. o tempo de calar deve ser o primeiro por ordem; e nunca saberá falar bem aquele que não tiver aprendido antes a calar-se.
(…)
7. Quando se tem uma coisa importante a dizer há que prestar uma atenção especial: devemos dizê-la para nós próprios e, após esta precaução, dizê-la outra vez para que não tenhamos que nos arrepender quando já não formos senhores de reter o que declarámos.
(…)
13. Por mais tendência que se tenha para o silêncio, devemos sempre desconfiar de nós próprios; e se se sentir demasiado desejo de dizer uma coisa, tal será muitas vezes motivo suficiente para nos determinar a já não dizer.
(…)

Joseph Antoine Toussain, abade Dinouart (1716-1786), eclesiástico “mundano” e polígrafo, escreveu sobre os mais diversos temas, sobretudo acerca das mulheres. Em 1746, publicou Le Triomphe du Sexe que lhe valeu a excomunhão.



Joseph Antoine Toussain – A Arte de Calar

quarta-feira, 19 de março de 2008






















MENINAS

As meninas são todas como eu:
A guardar astros que serão bordados,
A recolher os olhos deslumbrados
Depois duma viagem pelo céu.

E vestem blusas para esperar a tarde
Que há-de surgir ao fundo da vereda
E crispam dedos de sonhar a seda
Que a tarde trouxe e na cantiga arde.

Fincam braços no chão do parapeito
E debruçam o corpo para a lua
E temem vultos negros pela rua
E sentem fogo a iluminar-lhe o peito.

E deitam-se nas camas encantadas
E olham luar correndo nas campinas
E são felizes porque são meninas
E porque a vida as vai fazer mudadas.


Antologia Poética - Natércia Freire

domingo, 16 de março de 2008























- A minha mão recusa-se a escrever um novo livro. Você substituí-la-á.
A sua mão direita abandona a secretária sobre a qual repousava, ergue-se na tua direcção: os dedos tremem num esforço para se fecharem sobre a palma, em vão. Uma gaivota paralisada, que mantém por instantes o seu voo hesitante e vai depois esconder-se no bolso das calças brancas.

Donafugata - J. M. Laclavetine

sexta-feira, 14 de março de 2008


O PONTO

Mínimo sou,
Mas quando ao Nada empresto
A minha elementar realidade,
O Nada é só o resto.


Poemas- Reinaldo Ferreira

segunda-feira, 3 de março de 2008

Se escrevo não é para procurar a minha voz
a minha voz está em toda a parte embora não a ouça
É sempre precisa uma palavra como quem acende uma lâmpada
mesmo que seja apenas para iluminar uma página branca

Talvez só o leitor descubra a terra das palavras
e a voz que não é a minha como a voz do outro
Só ele talvez sinta a ferida que em mim não dói
porque escrever é sempre ir além do que se sente ou não

Não escrevo para ascender ou mergulhar no fundo
mas para evitar uma queda ou atolar-me num charco
Se o mundo é composto de apelos sufocados e vertiginosas linhas
quando o escutamos nada mais ouvimos do que o rumor da ausência
e não sabemos se ela é a dimensão do silêncio
ou a lentidão alheia do deserto


As Palavras - António Ramos Rosa

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