do lugar dos outros

do lugar dos outros

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008



Do Prefácio

Há uma escrita de mulheres. Confusa e embaraçada como elas, quando é uma escrita de mulheres. Eu atrevo-me a dizer que o supremo estilo das mulheres é o estilo místico; porque, então, tudo o que toca ao amor é a mais absurda visão e um acordo de profecias.
Mas, no mais das vezes, as mulheres escrevem segundo o modelo que obtiveram dos homens. Para eles, as mulheres têm de ser sensuais, complicadas, motivo de reflexão, submetidas ao obstáculo da reflexão. Mas não são assim. Os melhores livros de amor são feitos com o que os homens ignoram sobre as mulheres. Ignoram quase tudo.
Agora começa a haver uma literatura feminina, uma forma de a mulher se interrogar; mas ainda só balbucia e, quando tem mais sucesso, é quando se aproxima da anedota sexual de Margarida de Navarra.; quando parece à vontade no papel de marafona e espreitadora de alcovas. De repente, tudo pode mudar. Como quando Filomena (o rouxinol da fábula, porque Filomena é rouxinol e canta para tirar ao tempo o seu significado de acção, de discurso) intervém na página 75: “ Apesar disso, narradora, como te chamas na vida real? Eu? Mariana”.
Mariana é o símbolo, e Ana, sua metade, em vez do seu duplo, completa o enigma. Ambas pressentem a natureza duma mulher, mas não vão senão até à tentação de contar essa verdade que só pertence às mulheres. Todavia – haverá uma verdade feminina? Como se perguntássemos se as mulheres têm alma, se não são feitas de humor frio, impróprio das actividades intelectuais, como se disse. Não é tão absurdo como parece. A mulher é lançada para desertos onde a alma morreria de sede; onde a mente ficava sufocada se lhes conhecesse a solidão. Nada há de mais solitário que uma mulher; por isso é tão disponível – porque não sente profundamente a autoridade de nada no mundo. Ela não constrói termo de comparação. Quando é edificante e santa, isso não resulta exemplar; é uma experiência da solidão. Nunca é sujeita a nenhum poder; apieda-se, não ama. Sofre, mas não é vítima.
Filomena Cabral, no seu livro Tarde de mais Mariana, está perto de ausentar-se da tradicional literatura feminina, que é um rebuçado de ovos dos conventos de clarissas ou é uma apologia do amor para senhores velhos, com verdes amostras de libido. “Mereceste mil vezes a solidão” – diz Mariana. E diz:” por ti me prendo ao mundo”, com lucidez que até está a mais no texto elaborado. A verdade está aí, como uma gota de chuva no ar seco e na paisagem formidavelmente limpa e serena. A mulher disse a sua verdade: “por ti me prendo ao mundo”. Pelos olhos do homem ela vê, pelo espírito do homem ela deseja e ama. Mas não é ela quem ama nem deseja.
Não sei, realmente não sei, donde veio a mulher com o seu humor frio que a escola dos teólogos situa bem longe dos domínios da alma. Não há redacção definitiva sobre a mulher, enquanto não houver uma autêntica literatura feminina. Será que é tarde de mais Mariana? Será que já era tarde no tempo dourado e tempo de amor em que o homem foi criado?

Agustina Bessa-Luís
29 de Maio de 1985

Tarde de mais Mariana, de Filomena Cabral

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008






















«- o que estás a fazer? – perguntou a minha mulher quando me viu, contra o que é costume, demorar diante do espelho.
- Nada – respondi -, estou a olhar para o meu nariz, para esta narina. Ao carregar sinto uma dorzinha.
A minha mulher sorriu e disse:
- Pensava que estivesses a ver para que lado te descai.
Voltei-me como um cão a quem tivessem pisado a cauda:
- Descai? O meu nariz?
E a minha mulher, placidamente:
- Claro, querido. Olha bem para ele: descai-te para a direita.»

Vitangelo Moscarda é um homem que vive instalado na sua condição, até ao dia em que a mulher lhe revela um pormenor a seu respeito. A partir daí Moscarda sofre o inferno dos espelhos, do olhar dos outros, que nele sempre vêem o que ele não vê. Mas o que é ele para si próprio? Moscarda descobre que não pode apoderar-se de uma qualquer forma sem destruir o ser, a vida. Por isso irá até ao extremo de se exilar da sociedade, salvaguardando aquilo que para ele é essencial – única liberdade possível: o viver e morrer em cada momento, o renascer também a cada instante, a cada novo dia.

Um, Ninguém e Cem Mil, de Luigi Pirandello

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

























IX. MADRIGAL

Tu já tinhas um nome, e eu não sei
Se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.

Eugénio de Andrade, As mãos e os Frutos

domingo, 20 de janeiro de 2008

























(…)
«o que tenho para dizer, é de facto qualquer coisa de diferente do artista e da arte. É a mulher que pretende falar. E não é apenas Anais, a mulher, que pretende falar, mas sim eu, que pretendo falar em nome de muitas mulheres. À medida que me descubro a mim própria, sinto que sou apenas uma entre muitas, um símbolo. Começo a compreender as mulheres de ontem e as de hoje. As mudas, as inarticuladas do passado, que se refugiavam em instituições igualmente mudas, e as mulheres de hoje, todas acção, decalques dos homens. E eu no meio delas…»

(…)

O Diário de Anais Nïn

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008
























«Saboreei por muito tempo a minha vida perdida; pensei com alegria que a minha juventude tinha passado, porque é uma alegria sentir o frio invadir-nos o coração, e poder dizer, tacteando-o com uma mão, como uma lareira que ainda fumega: já não queima. Lentamente fui recordando todas as coisas da minha vida, ideias, paixões, dias de cólera, dias de luto, latejos de esperança, tormentos de angústia. Revi tudo, como um homem que visita as catacumbas e contempla lentamente, dos dois lados, os mortos alinhados uns a seguir aos outros. Todavia, se contar os anos, não foi há muito tempo que nasci, mas tenho inúmeras recordações que me oprimem, como os velhos são oprimidos por todos os dias que viveram; às vezes, parece-me que já vivo há séculos, e que o meu ser contém os restos de mil existências passadas. Porquê? Amei? Odiei? Procurei alguma coisa? Ainda duvido; vivi à margem de todo o movimento, de toda a acção, sem me mexer, nem pela glória, nem pelo prazer, nem pela ciência, nem pelo dinheiro.
Ninguém, nem aqueles que me viam todos os dias, nem os outros, soube alguma coisa do que vai seguir-se…»


Novembro, de Gustave Flaubert

terça-feira, 15 de janeiro de 2008
























PERMANENTE ALFORRIA

o paredão enfrenta o mar que agride
a gaivota sulca o ar que acolhe
o sol arreda a nuvem que corteja
o mar liberta a onda que revolta
a areia sorve a água que agrega
o pé pisa a concha que estranha
o corpo saúda a natureza que alenta
a solidão rodopia no ar que afaga
a manhã coalha-se na luz que transporta
o cansaço esbarra no quadro que confronta
o sábado esgota-se no ocaso que redime
a intenção queda-se no esgar que não se cumpre
o domingo chega na cópia que oprime
o homem só regista o tempo que o suprime. e eis
que a liberdade toa no peito o acto de ufano feito ave
no infinito convocando ao vento a esperança
em Abril canto comum de silêncios incontidos
liberdade de poder íntegro. inteira alforria do ser,
que nega a agressão
e ao pé o direito de pisar
e as solidões rodopiantes
e esgotados sábados redentores
e cansaços esbarrados de confrontos
e esgares em rictos mal cumpridos
e cópias das supressoras opressões.

Paulo Neto

in: Na Liberdade – Antologia Poética- 30 anos-25 de Abril


segunda-feira, 14 de janeiro de 2008






















(…)

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

(…)

A Invenção do Amor e Outros Poemas, de Daniel Filipe

sábado, 5 de janeiro de 2008























(…)
Dentro da alma,
Lá bem no centro,
Pousado numa pata
Está um pássaro.
E o nome do pássaro é pássaro da alma.
E ele sente tudo o que nós sentimos:

Quando alguém nos magoa, o pássaro da alma agita-se para lá e para cá.
Em todos os sentidos do nosso corpo, sofre muito.
Quando alguém nos ama,
O pássaro da alma dá pulinhos
De contente,
Para trás e para a frente,
Vai e vem.

(…)

E o mais importante – é escutar logo o pássaro.
Pois acontece o pássaro da alma chamar por nós, e nós não o ouvirmos.
É pena. Ele quer falar-nos de nós próprios.
Quer falar-nos dos sentimentos que estão encerrados nas gavetas
Dentro de nós.

(…)

O Pássaro da Alma, de Michal Snunit