do lugar dos outros

do lugar dos outros

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

(…)
Raul queria provar o seu amor. Para isso decidiu praticar um crime. Todos o condenam, decerto. No entanto, o que ninguém pode negar é que a sua prova, embora de um egoísmo atroz, não fosse a mais concludente, a maior prova de amor, como lhe chamava. «Só se ama por interesse. Não se ama um corpo disforme». Ele possuía uma criatura ideal; pois bem, destruiria toda a sua beleza. O seu amor não diminuiria… pelo contrário: morto o corpo, amaria a alma só com a sua alma.

(…)

Loucura… - Mário de Sá-Carneiro

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008



















«Quantas vezes não me tenho aproximado dos outros para me distanciar de mim?
Quero encontrar-me naquilo que me dispersa como se a unidade se atingisse pela sobreposição de todos os contrários. Quero encontrar-me naquilo que me une e só me reconheço naquilo que me mortifica.
A duração não se compõe da soma de todos os instantes mas na perspectiva duma única fidelidade.»

«Cada um de nós compõe-se sobretudo daquilo que não sabe, daquilo que nunca viu. Os homens são como pedaços de memória: definem-se pela ausência.»

No Devagar Depressa dosTempos - Marcelo Duarte Mathias

sábado, 16 de fevereiro de 2008

A MULHER QUE CRIOU A TERRA
(Mito da Criação)

No início não existia terra para se viver, mas lá em cima, no grande azul, habitava uma mulher sonhadora. Uma noite sonhou com uma árvore coberta de rebentos brancos, que iluminava o céu quando as suas flores se abriam, mas que trazia uma terrível escuridão quando elas se voltavam a fechar. O sonho assustou-a, de modo que foi ter com os sábios homens velhos que viviam com ela, na sua aldeia no céu, e contou-lhes.
«Puxem esta árvore mais para cima», implorou-lhes, mas eles não entendiam. Tudo o que faziam era escavar à volta das raízes, tentando arranjar espaço para haver mais luz. Então a árvore caiu no buraco que eles fizeram e desapareceu. Depois disso, deixou de haver luz, apenas escuridão.
Os homens velhos começaram a ter medo das mulheres e dos seus sonhos. Era dela a culpa da luz se ter ido para sempre.
Então puxaram-na até ao buraco e empurraram-na. Sentiu-se a cair, para o fundo, em direcção ao grande vazio. Debaixo dela não existia nada para além de uma terrível quantidade de água. Esta estranha mulher sonhadora do grande azul, certamente teria ficado desfeita em mil bocados, não fosse um peixe-águia que veio em seu socorro. As suas penas formaram uma almofada que permitiu à mulher uma aterragem suave por cima das ondas.
Entretanto, o peixe-águia não conseguia sozinho mantê-la. Ele precisava de ajuda. Chamou pelas criaturas das profundidades. «Temos que encontrar alguma coisa sólida onde esta mulher possa descansar», disse ansiosamente. Só que não existia nenhum pedaço sólido, apenas as águas tormentosas e sem fim.
Um mergulhão desceu na água, para baixo, até ao fundo do mar e trouxe de lá um pouco de lama no seu bico. Encontrou uma tartaruga, espalhou a lama no seu casco e mergulhou outra vez para trazer mais lama.
Então os patos juntaram-se-lhe. Eles gostavam de se sujar com lama e portanto ajudaram a trazer mais alguma nos seu bicos, espalhando-a por cima da tartaruga. Os castores também ajudaram – eles eram grandes construtores – e trabalharam muito, tornando a carapaça da tartaruga cada vez maior.
Agora toda a gente estava muito ocupada e entusiasmada. Este mundo que eles estavam a construir começava a ficar enorme! Os pássaros e os animais apressavam-se, construindo países, continentes, até que por fim tinham construído toda a terra. Durante todo esse tempo, a mulher do céu esteve sempre calmamente sentada nas costas da tartaruga.
Ela ainda aguenta a terra até hoje.


ROSA DO MUNDO – 2001 Poemas para o futuro


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008























(…)

- Sabes? nós julgamos que somos livres quando a morte nos afasta de alguém cuja presença se tinha tornado demasiado pesada ou opressiva. Mas é outro nada que nos está reservado, quando ficamos. E então talvez percebamos que estamos condenados a não dispor de palavras próprias. Todas as palavras já foram ditas, e o que repetimos não é mais do que as aspirações anteriormente formuladas.

(…)

Há homens cuja natureza não pertence a nenhuma época, é de todas pelo seu singelo amor à liberdade: outro sonho desmedido. E todos os sonhos envolvem riscos e impelem a erros às vezes desnecessártios. Olhas para mim porquê? Essa pureza árida consente ou exprime qualquer forma de julgamento? Fomos derrotados, e então? Recomecemos, talvez sem o alvoroço inicial, talvez com uma tristeza sem indulgência, mas ninguém nem nada nos obriga a renunciar à quimera, à utopia.

(…)

Agora sei que nem a morte consegue separar tudo, assim como a vida poucas coisas desvenda. Temos nós de as descobrir.


Um Homem Parado no Inverno – Baptista-Bastos

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008























O CASAMENTO

ALMITRA falou de novo
e disse:
- Mestre, que pensais do Casamento?

Ele respondeu, dizendo:

- Nascestes juntos,
juntos ficareis para sempre.

Ficareis juntos
quando as asas brancas da morte
dispersarem os vossos dias.

Sim. ficareis juntos
até na silenciosa memória de Deus.

Mas que haja espaço na vossa comunhão;
e que os ventos do céu
dancem no meio de vós.

Amai-vos um ao outro,
mas não façais do amor um empecilho:
seja antes um mar vivo
entre as praias das vossas almas.

Enchei cada um o copo do outro,
mas não bebais por um só copo.

Partilhai o pão;
mas não comais do mesmo bocado.

Cantai e dançai juntos, sede alegres;
mas permaneça cada um sozinho,
como estão sozinhas as cordas do alaúde
enquanto nelas vibra a mesma harmonia.

Dai os vossos corações;
mas não a guardar um ao outro.

Porque só a mão da Vida
pode conter os vossos corações.

Mantende-vos juntos,
mas nunca demasiado próximos:
porque os pilares do templo
elevam-se, distanciados,
e o carvalho e o cipreste
não crescem à sombra um do outro.

O Profeta-
Khalil Gibran

domingo, 10 de fevereiro de 2008


Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de frutos dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração


Todos os Poemas- Ruy Belo

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008
























Tia Suzana, Meu Amor traz-nos toda a comunicabilidade de uma escrita sedutora, feita de registos subtis desse jogo incessante entre o atávico e a mudança, que tem tanto a ver com a sua experiência de vida como com o corpo social de que fazemos parte. Um belo livro que conta a paixão lenta (que percorre todo o texto como uma melodia) de um jovem beirão pela sua tia.
Tia Suzana, Meu Amor - António Alçada Baptista

domingo, 3 de fevereiro de 2008
























«Em poesia, creio que é o nosso maior autor contemporâneo a cantar o amor e o desejo. (…) Um Amor Feliz prolonga, nas dimensões do romance, a subtileza da escrita, a delicadeza no olhar, aqui e ali a irrupção súbita de uma anotação crítica violenta e enraivecida que dá vigor à narrativa, e sobretudo isto: o prazer de narrar uma história, uma história de amor.»

Lauro António (in A Capital, 29/12/1986)


(…)
Digamos, para simplificar, que se chama Y. (E surpreendo-me a murmurar: Ípsilon…) Além de não querer nem poder dizer o seu nome, o nome é o que menos interessa; ou o que menos deveria interessar-nos. Mas só o facto de lhe chamar Y já a torna diferente de quem ela é, de quem eu julgo que ela seja.

(…)

Um Amor Feliz, de David Mourão Ferreira

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008
























FUNDO DO MAR

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.


Antologia – Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen