do lugar dos outros

do lugar dos outros

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Porém, o que dói é a ausência de dor na face dos
mortos: hirtos na fina porcelana do seu
rosto, rígidos no vento da sua pedra.
Buracos negros as suas pálpebras ante o
choro das mulheres, a devastação dos filhos.
Sentissem eles as pulsações dos ventos,
a inquietação dos cães, a ruína dos
canteiros, o abandono dos trigos e das vinhas!
Se eles soubessem quanto apascentamos
a memória da sua transumância pelos
lugares que pisaram, e como se lhes
agiganta a cera das figuras, depois da partida
dos seus corpos minguados!
Mas nenhum bálsamo nos dão em troca
de tudo o que lhes damos; tudo se perde
no gesto imóvel, para sempre desenhado.
Esse silêncio compulsivo é o justo preço a pagar
pela mais pura e absurda decantação da alma.

O nome dos Mortos seguido de Biografia das Sombras – Fernando de Castro Branco

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Quais são as fronteiras entre a liberdade e a dependência? De que material erótico se faz a inocência? E entre o sonho e o tempo, entre o real e o quotidiano que o transcende, que teia se pratica? De que modo os símbolos se reflectem e se incluem no espelho das coisas?

Boi Vermelho - Catarina Fonseca

domingo, 22 de junho de 2008

«Sonhamos enquanto vemos. Vemos enquanto sonhamos. Mas não estaremos sempre no mesmo lusco-fusco? E não é apenas de noite que o sol atravessa a Terra para nos iluminar? E não transpõem os demónios todos os umbrais da luminosidade?»

Botho Strauss – Fragmentos da Incompreensão

terça-feira, 17 de junho de 2008

424 Quando estiveres cansado de olhar uma flor, uma criança, uma pedra, quando estiveres cansado ou distraído de ouvir um pássaro a explicar o ser, quando te não intrigar o existirem coisas e numa noite de céu limpo nenhuma estrela te dirigir a palavra, quando estiveres farto de saberes que existes e não souberes que existes, quando não reparares que nunca reparaste no azul do mar, quando estiveres farto de querer saber o que nunca saberás, se nunca o amanhecer amanheceu em ti ou já não, se nunca amaste a luz e só o que ela ilumina, se nunca nasceste por ti e não apenas pelos que te fizeram nascer, se nunca soubeste que existias mas apenas o que exististe com esse existir, quando, se -, porque temes então a morte, se já estás morto?

554 Mas a tua estrela pode não estar no céu. Põe-na lá.


Pensar - Vergílio Ferreira

sexta-feira, 13 de junho de 2008



NÃO DIZIA PALAVRAS

Não dizia palavras.
Aproximava apenas um corpo interrogante,
Porque ignorava que o desejo é uma pergunta
Cuja resposta não existe,
Uma folha cujo ramo não existe,
Um mundo cujo céu não existe.

Entre os ossos a angústia abre caminho,
Ergue-se pelas veias
Até abrir na pele
Jorros de sonho
Feitos carne interrogando as nuvens.

Um contacto ao passar,
Um fugidio olhar no meio de sombras,
Bastam para que o corpo se abra em dois,
Ávido de receber em si mesmo
Outro corpo que sonhe;
Metade e metade, sonho e sonho, carne e carne,
Iguais em figura, iguais em amor, iguais em desejo.

Embora seja só uma esperança,
Porque o desejo é uma pergunta cuja resposta ninguém sabe.


Antologia Poética – Luís Cernuda

quinta-feira, 5 de junho de 2008


ENCOMENDA

Desejo uma fotografia
como esta – o senhor vê? – como esta:
em que para sempre me ria
com um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia…
Não… Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia


Antologia Poética – Cecília Meireles