do lugar dos outros

do lugar dos outros

quarta-feira, 17 de junho de 2009


AS CANDEIAS

O perigo dos espelhos é exporem-se os ossos.
A luz reflui através das omoplatas, distribui-se
pelos flancos, concentra-se nos pés.
De alto a baixo somos vivas candeias acesas.
Entramos na obscuridade com o fascínio
de um dom próprio.
Não possuímos um deus, mas duas mãos lisas
e uma boca de vidro – e uma voz
que vai morrer.

Fazer estalar a amnésia, pouco a pouco,
ou de um só golpe. Ninguém acorda
senão numa sala de pânico.
Levas o dedo à ferida: uma fechadura.
E, rodando o dedo, há por baixo
uma tulipa aberta,
decifrada.
Podias amar concretamente esta dolorosa,
solitária investigação dos interiores,
as malhas soltas da luz.

Porque o mundo é um contínuo acto de costura.
Rompemos com o mistério apenas para
que se teça um mais alto e apaixonante enigma.

Tudo o que nos fulmina, cresce devagar.
Entende-se que seja assim, trôpego, o existir?
Não, não temos uma súbita iluminação,
mas recantos e recantos, penumbras
- e uma voz exausta que vai
morrer.

Vasco Gato - Imo