do lugar dos outros

do lugar dos outros

sexta-feira, 17 de julho de 2009



EMBRIAGA-TE

Devemos andar sempre bêbedos. Tudo se resume nisto: é a única solução. Para não sentires o tremendo fardo do Tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
Mas com quê? Com vinho, com poesia ou com a virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te.
E se alguma vez, nos degraus dum palácio, sobre as verdes ervas de uma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que passou, a tudo o que gemeu, a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são: «São horas de te embriagares! Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia, ou com a virtude, a teu gosto.»


Charles Baudelaire – O Spleen de Paris (pequenos poemas em prosa)


segunda-feira, 13 de julho de 2009



PEDRAS

Da mesma raça, satânica, poderosa
família, os nossos
olhos; diria seres com a beleza e a crueldade das pedras
e das cobras; a impotência e a sorte
de se voltarem
para a arte com uma lucidez
desesperada.
Seres inquietos e divididos; conturbados, e por isso mesmo capazes
de sobreviver à mais venenosa
orfandade; uma vez o nosso parentesco foi sempre
mais que anunciado.
Que ele te não afaste da «inefável falta que sobe dos filhos
aos pais», pois, e em verdade, em verdade, somos
cobras: idênticos,
iguais.
Em silêncio, no bater do coração, ouso implorar-te:
Escuta, uma cobra é uma cobra uma cobra
uma cobra
e deve ser esmagada antes que o veneno
nos incuta.
«Não me mordas», pedes.
Vem, de onde, esse temor? Do não quereres tomar conta
do menino que fugiu da «tormenta
nocturna que se fazia negrume diante dos seus
olhos?»
Sossega. Não tos fecharei. Não te morrerei.
Não te morderei.
Se for capaz.
De amar-te. Como o fazes e na rebeldia
dos mais sinceros e transparentes
sinais.

Cobras. Somos cobras.
Somos olhos: Poetas. Nada
mais.

Eduarda Chiote – O Meu Lugar à Mesa

(prémio Teixeira de Pascoaes 2006)

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sexta-feira, 3 de julho de 2009

desarrumo essa estrela que estala nos teus olhos como alma que se
assopra ao sabor da substância das águas que não sendo lágrimas são a
cal suspensa dos lábios. que sendo casa são delírios que o vento arrasa.

que não sendo corpo é a tua asa sobre um relâmpago que é a nossa chegada.

íngreme o destino do instinto das tuas pupilas. onde me desenhas um
sinal. que sendo recente é antigo. próximo da música longe das estátuas.

que te abrasam como palavras cegas…tão dolorosamente cegas.

e se é ao sul que os animais se estendem ao sol estendo-te a memória.

faz-me um nome. um só que seja. só uma sílaba. tu sabes que a morte é
um grito. sufocado e laço. nó que te desato. para que me sejas o
assombroso movimento de um bicho de seda. distância lenta na tua
pele. sempre adiante.

sempre pálpebra delicada…macio dedilhar onde te cuido a favor do
tempo…taça de espuma selvagem onde te declaro mais puro.
e se disser que te amo? como ilha convulsiva?
e se disser que me és MAIOR na orla das marés e que me invades como um
osso fino…que dirás amanhã…quando o dia te fizer carta ou pássaro?


Os dias do amor – Isabel Mendes Ferreira