do lugar dos outros

do lugar dos outros

terça-feira, 27 de outubro de 2009



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Todo o longo verão eu repassava em mente aquele dia em que minha mãe, de dedos ágeis, ficara concertando duma velha garnacha de meu mestre uma sotaina de ordinando. Porque já estava decidido que iria cursar teologia na velha cidade do Bispo Azul. A despeito de minha surda repugnância, tive de render-me; rendi-me à força das coisas e, não menos, às boas razões de meu mestre.
- Libório – dissera-me ele – a vida é curta e a pobreza longa e negra. A grande questão é menos viver a nosso gosto, que viver sem custo. Quem está contente da sua dita? Não creias que as coisas revistam na prática a rigidez que se lhes inculca em teoria. O homem é pecador; porque não havia de ser natural e, portanto, escusável pecar o sacerdote? Não, não receies pecar racionalmente, sempre que a máquina de viver para aí torça. Entra para a carreira eclesiástica com ânimo de ser cumpridor, mas de modo algum a ser um jansenista. As leis têm a máxima tensão para que delas ressume algum domínio. Assim na Igreja; muito rigor, muita ameaça, mas tudo aparente, tudo invencioneiro! Deus é melhor do que o pintam os teólogos; fez a vida, sabe que se não pode vergar o curso à vida. Se outra relutância não tens que a de ver a tua existência mutilada dos raros gozos com que é lícito contar um leigo, não te detenhas. Nosso Senhor fez-nos o coração de molde a sentir o que é bom e a amar o que é belo. O que é preciso é não ser escandaloso, porque não é a paixão que deslustra o homem, mas o escândalo. Pode-se muito bem ser cauto sem pedir a Satanás a capa da hipocrisia. Muitos dos padres do meu tempo são honrados pais de família, e ninguém lhes pede contas de tal humanidade.
Estávamos no presbitério, à sombra das Carvalhas, e meu mestre, inadvertidamente, pôs-se a riscar com uma varinha o chão moído. Na fronte eu lia-lhe a serena filosofia do homem que divisa a tumba a seus pés.
- E olha – tornou ele – eu sinto, tu não sentes? o vento de tempestade que sopra esta terra de dez séculos. Longe vá o agouro, mas ia jurar que tristes dias vão amanhecer para ela, tão estimada que foi, noutros tempos, do Senhor. E verás, as cidades hão-de converter-se em charcos de desordem e de chacina. Por isso, mais vale o remanso da aldeola, onde os homens e as ideias sempre são menos feras que as feras! Deus mandou-nos viver, vivamos! Ou, noutros termos, fujamos da dor e da morte!
Com este e outros discursos e com o argumento esmagador de nossos poucos teres, preparou meu ânimo a requerer admissão ao Seminário. Minha moral havia-se amolecido e eu pensava que, ungido de ordens maiores, não sendo honesto cobiçar uma D. Estefânia, seria razoável amar uma Celidónia.
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Aquilino Ribeiro – A Via Sinuosa

quinta-feira, 8 de outubro de 2009


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sábado, 3 de outubro de 2009


Nila sentia o cheiro do fim do dia, um frio cru apertava-a, entrou em casa de Onina, regou os cactos, ficou em frente do espelho até chorar. Achou-se linda e decidiu.
Andou na cidade numa espécie da despedida falsa, a despedida de quem sabe que amanhã está exactamente no mesmo lugar e passeia sempre com o gesto guardado do último adeus.
Um nevoeiro ténue embrulhava os espaços, os jardins húmidos cheiravam a verde novo, as luzes amarelas e doces transpareciam das janelas, sentiam-se os passos dos inquilinos engaiolados. Na esquina, um buraco fundo e largo rodeado de tapumes furava a rua até à raiz do prédio. Nila pensou o que todos tinham pensado, mas achou que era para plantar uma palmeira gigante.
O guarda das obras tinha a cabeça entre as mãos, como os velhos nas janelas, estava sentado à fogueia, o fumo misturava-se com o nevoeiro e o cheiro quente da lenha agradou a Nila.
- Olá linda!
Nila parou a dirigir-se ao homem, ele baixou a cabeça e assobiou qualquer coisa.
- Chamou? – perguntou-lhe a mulher.
- Não, não, deseja alguma coisa?
Nila sentou-se no tijolo ao lado dele, o homem levantou-se rapidamente, e embaraçado disse:
- Sou o guarda da obra, está frio, se quiser sente-se e aqueça-se.
- Estou sentada, obrigada.
- Ah, pois! – e o guarda sentou-se também.
Os últimos autocarros passavam em grande velocidade, quase vazios, a lenha estalava, os olhos velhos e pequeninos do homem iluminavam-se com as chamas e o calor da companhia. Nila sorriu triste, tentou ver para lá do nevoeiro, falou porque lhe apeteceu ouvir-se.
- Saímos do palco da noite e entramos no carrocel do dia-a-dia, andamos às voltas, tudo gira connosco. De manhã lá está a girafa que escolhemos, parada na nossa frente. Tudo combinado. É só entrar e mais uma voltinha. Preferimos o palco. Quem é o mais? Eu, gritou o bêbedo. Eu, grito eu. E amanhã, pelo menos dizem: é extraordinária. Eu sei do meu medo e eles não sabem que me sentei exactamente em cima da girafa que escolhi na véspera. E o carrocel parte. Tudo é igual ao igual do palco que trazemos pendurado ao peito, disfarçado de cruz ou figa. Ou corno.
- Desculpe não percebi, a senhora é artista?
- Posso deitar-me consigo ali dentro?
O homem olhou para Nila, torceu as mãos, espiou as máquinas e fingiu.
- Hã!?
- Posso deitar-me ali consigo?
O homem voltou a espiar as máquinas, os tapumes e disse:
- Eu sou o guarda.
- Vamos!
Deu-lhe a mão e, quando entraram, ele apenas repetiu que era o guarda.
Nila despiu-o como se fosse uma criança, beijou-lhe o corpo. Os braços até ao cotovelo, o rosto e o pescoço eram morenos, tinham uma cor quente, o resto do corpo era violentamente branco, quieto, quase puro. Daí a pouco a barraca de madeira do guarda estremeceu como se as máquinas entrassem em movimento, mas o prédio não lhes sentiu o barulho dos motores. Um perfume fino envolveu as picaretas, as pás, as botas e a perfuradora encostada ao fundo, entre o divã e a parede. A noite passou depressa. Quando os primeiros operários chegaram, o guarda estava ainda na cama e perguntou-lhes a que cheirava. Um deles pegou na perfuradora e no limiar da porta respondeu-lhe com cansaço:
- A ratos mortos.

Margarida Carpinteiro – Ninguém Morre de Véspera