do lugar dos outros

do lugar dos outros

sábado, 3 de outubro de 2009


Nila sentia o cheiro do fim do dia, um frio cru apertava-a, entrou em casa de Onina, regou os cactos, ficou em frente do espelho até chorar. Achou-se linda e decidiu.
Andou na cidade numa espécie da despedida falsa, a despedida de quem sabe que amanhã está exactamente no mesmo lugar e passeia sempre com o gesto guardado do último adeus.
Um nevoeiro ténue embrulhava os espaços, os jardins húmidos cheiravam a verde novo, as luzes amarelas e doces transpareciam das janelas, sentiam-se os passos dos inquilinos engaiolados. Na esquina, um buraco fundo e largo rodeado de tapumes furava a rua até à raiz do prédio. Nila pensou o que todos tinham pensado, mas achou que era para plantar uma palmeira gigante.
O guarda das obras tinha a cabeça entre as mãos, como os velhos nas janelas, estava sentado à fogueia, o fumo misturava-se com o nevoeiro e o cheiro quente da lenha agradou a Nila.
- Olá linda!
Nila parou a dirigir-se ao homem, ele baixou a cabeça e assobiou qualquer coisa.
- Chamou? – perguntou-lhe a mulher.
- Não, não, deseja alguma coisa?
Nila sentou-se no tijolo ao lado dele, o homem levantou-se rapidamente, e embaraçado disse:
- Sou o guarda da obra, está frio, se quiser sente-se e aqueça-se.
- Estou sentada, obrigada.
- Ah, pois! – e o guarda sentou-se também.
Os últimos autocarros passavam em grande velocidade, quase vazios, a lenha estalava, os olhos velhos e pequeninos do homem iluminavam-se com as chamas e o calor da companhia. Nila sorriu triste, tentou ver para lá do nevoeiro, falou porque lhe apeteceu ouvir-se.
- Saímos do palco da noite e entramos no carrocel do dia-a-dia, andamos às voltas, tudo gira connosco. De manhã lá está a girafa que escolhemos, parada na nossa frente. Tudo combinado. É só entrar e mais uma voltinha. Preferimos o palco. Quem é o mais? Eu, gritou o bêbedo. Eu, grito eu. E amanhã, pelo menos dizem: é extraordinária. Eu sei do meu medo e eles não sabem que me sentei exactamente em cima da girafa que escolhi na véspera. E o carrocel parte. Tudo é igual ao igual do palco que trazemos pendurado ao peito, disfarçado de cruz ou figa. Ou corno.
- Desculpe não percebi, a senhora é artista?
- Posso deitar-me consigo ali dentro?
O homem olhou para Nila, torceu as mãos, espiou as máquinas e fingiu.
- Hã!?
- Posso deitar-me ali consigo?
O homem voltou a espiar as máquinas, os tapumes e disse:
- Eu sou o guarda.
- Vamos!
Deu-lhe a mão e, quando entraram, ele apenas repetiu que era o guarda.
Nila despiu-o como se fosse uma criança, beijou-lhe o corpo. Os braços até ao cotovelo, o rosto e o pescoço eram morenos, tinham uma cor quente, o resto do corpo era violentamente branco, quieto, quase puro. Daí a pouco a barraca de madeira do guarda estremeceu como se as máquinas entrassem em movimento, mas o prédio não lhes sentiu o barulho dos motores. Um perfume fino envolveu as picaretas, as pás, as botas e a perfuradora encostada ao fundo, entre o divã e a parede. A noite passou depressa. Quando os primeiros operários chegaram, o guarda estava ainda na cama e perguntou-lhes a que cheirava. Um deles pegou na perfuradora e no limiar da porta respondeu-lhe com cansaço:
- A ratos mortos.

Margarida Carpinteiro – Ninguém Morre de Véspera

1 comentário:

Unknown disse...

tinha saudades de me passear aqui: e adorei este encontro.

obrigada.

um beijo, zé