do lugar dos outros

do lugar dos outros

segunda-feira, 26 de julho de 2010


os humildes

O salgueiro, na fímbria do rio, guarda-os na sua gruta de palhetas vegetais. A criança nasceu apenas há minutos e Rosa mantém o pavor fundeado nos olhos claros, sem maré. A mãe agiu sozinha (talvez o pai a ajudasse, pelo menos é dele o canivete). Ela olha a erva, de verde e compustura tresmalhados, o corpo do irmão ainda íntimo como um ventre, a mãe de colo tapado pelo cobertor, as roupas empapuçadas de visco, e as manchas de sangue, a empastarem aos poucos a terra e o céu.
Esteve não muito longe, atrás de uma fraga. Quase nada via porque a mãe disse: «Se espreitas o menino morre». Ficou acocorada a escutar o movimento do rio, tão brilhante que parecia ter esgotado a luz. até que do salgueiro se desprendeu um grito, mais intrínseco do que um sismo, e ela principiou a tremer com medo de que a mãe tivesse morrido.
A mãe (Roberta)manda pôr água num panelo, à torreira do sol. ela enche-o mergulhando-o na corrente, arrastando-o sobre as areias que trinam, de joelhos à mostra, a florir nas pedras frescas. Outros salgueiros amadurecem o seu verde na soalheira que esplende, pletórica de arestas, de redondos, de vértices. Encharca o aventalinho e dobra-o, entala uma ponta no cós da saia, agarra o panelo pelas asas e expõe-no no cocuruto de uma penha, ao calor balsâmico do dia. está furado. Gotas resvalam e embebem-se, espaçadas, nos orifícios poeirentos da pedra.
- Verte – diz de cima para a mãe.
- Vai-lhe deitando água com a tigelinha.
Rodopia entre a margem e a fraga, examina a água no panelo, mantém-na quase até aos bordos. Um vagido desperta na boca do recém-nascido, novo e por polir como uma pedra do campo. Alva e fina, porque o rio côa-se muito límpido, é uma maravilhosa toalha fluida para purificar-lhe o corpo gelatinoso. Ela própria o lava, junto da mãe que observa os seus movimentos tacanhos.
Roupas coloridas (cabriolam com elas nas feiras e nos largos) suspendem-se mais além, no tronco de outro salgueiro. O menino está agora deitado e o seu choro acutilante prolonga-se pela fila de árvores pendentes.
- O teu pai não traz o leite – murmura a mãe – Também estava sequinha quando nasceste.
Rosa vai lavar as roupas do parto. Acha naturais as porcarias coaguladas, a baba cruenta que se deslassa no rio, traçado de sol. O lençol ensopado adquire um peso de alter para os seus braços tenros. Uma vibração esfiampa-lhe os cabelos e traz-lhe a voz aguda da mãe: «Não te demores, Rosa».
Acende o lume: duas achas cruzadas no centro das quais ateia o fogo. Descasca e pica uma cebola. Vê-a a crepitar na panela, vítrea, lapidada, ensoada de azeite.
- Bendito salgueiro – diz a mãe. (Não é a planície uma casa magnífica, apenas de santos e de guerreiros, de viajantes e de saltimbancos?).
O pai não traz o leite. Tem esperança nos seios da mulher e esclarece que em roda só há avarentos que se guardam em casa, mal suspeitam de um olhar de pobre.
- Mas eu quero leite – teima a mãe – Rosa, leva um púcaro para o leite.
Rosa transpõe a cintura do rio, por cima das pedras que se enterram no fundo e se amaciam nas volutas de água. Toma a estrada alcatroada cujo preto esmorece em tremulinas radiantes. Tem a asa do púcaro enfiada num dedo, à maneira de um largo anel. Um mosquito ziguezagueia , desenrola sobre o seu ombro um som esquentado que se coaduna com o calor das folhas povoadas de besouros, libélulas, gafanhotos e louva-a-Deus. Perde-se no tempo e no espaço afiado da estrada, à espera de que surja uma vivenda, uma taberna, um casebre. Vê uma quinta avolumada por um muro, cintada em uma cota aguerrida de silvas. Puxa o manípulo da campainha que chocalha uma revoada de guizos, desbragada e alegre. As flâmulas de uma palmeira divergem, brandas, no cimo do tronco verrugoso.
- Que queres? – pergunta uma mulher. A fita do avental dá-lhe duas voltas à cintura e achata-se-lhe, num laço murcho e unilateral, sobre o início do ventre.
- Um pucarinho de leite.
- Para quê? Para algum gato?
- Não. Para o meu irmão.
- Como te chamas? Tu é que o bebes…
- Não bebo, não.
- Entra. Tens sorte. Ainda ficou um resto.
Há um terreiro. A palmeira fere-lhe o meio com o seu corpo torneado e tigrino. Rosa sobe as escadas e entra na casa, atrás da mulher. Defronta uma cozinha imprevista, desprovida de achas ensarilhadas (mas com um fogão), de pedras a servirem de assentos (mas com bancos), de coxas a apoiarem os pratos (mas com uma mesa). Um gato sai a miar debaixo da chaminé. Tem olhos maritimamente verdes, com barcos delgados ao centro.
- Trouxeste uma vasilha? – (a mulher não reparou no pucarinho).
- Trouxe – diz ela.
A mulher vem para o varandim. Deita-lhe, de um copo, o leite no púcaro, lunar e nevado. Rosa pousa-o no parapeito. Contempla-lhe a doçura macia e gordurosa.
- Só tenho um copo.
O gato salta. O púcaro desequilibra-se. A mulher exclama: «Oh!». E Rosa tem a impressão de que o leite a alastrar desperdiçado, no chão, é um cemitério.

(…)

Cantileno – Maria Gabriela Llansol

quinta-feira, 17 de junho de 2010

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e foi a luz que te fez sublime dentro da sombra. com a prudência de
um segredo de estátuas.
o pouco efémero é agora regra e mensagem. como se recolhido do
chão fosses mais caminho que caminheiro. e ao lado do visível
dos teus passos mora um ninho de encostas. que te afloro.
pacificamente. e onde me escondo. para sempre.

Isabel Mendes Ferreira – As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar
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sábado, 12 de junho de 2010


(…)

«Gabriel disse-me uma vez que, ao conhecê-la, viu diante de si o seu destino», conta Ford Madox Brown no seu diário. No puro plano da realidade, ele vira apenas uma rapariga que a pobreza e a cor ticiano do cabelo logo à nascença haviam condenado.

(…)
Havia nela como que uma falha que provinha talvez da exaustão e da deficiência alimentar, dando-lhe um ar furtivo, de gazela, que fez cair as apresentações.
Lizzie passou para detrás da porta abandonada que servia de biombo e regressou vestida de rapaz. Apanhara o cabelo sobre a nuca. Mostrava as pernas e isso produzia um curioso efeito assexuado. Gabriel adiantou-se e começou a ocupar-se da figura que faltava, não nos papéis de esboço, mas na tela. As personagens masculinas já se achavam muito avançadas. Ele posara para o bobo. Os Pré-Rafaelitas provocavam situações de entreajuda em que existia, a par da exibição, sinceridade.
Deverell e Millais arrefeciam, de pé, imóveis e a perder entusiasmo. Viam em Lizzie a rapariga magra e de feições irregulares que até então não tinham visto. A narrativa de Walter, que avassalara o próprio narrador, deixava de exercer influência e a temperatura dos seus corpos ressentia-se. Esfregavam os braços, percebendo toda a impiedade do Inverno. Observavam Rossetti e Miss Sid que estavam sós, naquilo que talvez fosse o encontro do pintor com o modelo. Porém sentiam desconforto, como se presenciassem uma cena íntima.
Lizzie, que mantivera a posição sem vacilar nos dias anteriores, vergava as costas, inclinada para o chão. Era um abatimento poderoso sob o qual circulava alguma glória. John Everett Millais compreendeu a origem do fascínio de Miss Sid. Tinha um corpo selado na tragédia, um apetite sacrificial. «Hei-de pintar esta mulher», pensou. Imaginava-a num cenário de narcisos. Não sabia que estava a vê-la morta.

(…)
A verdade é que, sem o contributo da senhora Millais, «Ophelia» nunca seria o quadro que nós hoje conhecemos. O vestido bordado de pedraria, que John descobriu num bricabraque e pelo qual, apesar de velho e sujo, pagou uma quantia razoável, foi pessoalmente restaurado pela mãe. Também se deve a Emily a invenção da banheira em que Lizzie mergulhou. O filho queria ter à vista o efeito da água nos cabelos da jovem morta, da impregnação lenta no tecido, da refracção dos braços, já cobertos. Imóvel, a modelo permanecia naquela submersão quase total, no Dezembro londrino, que normalmente não inspiraria um qualquer pensamento de cuidado, a provação parecia desumana. Para que a água se mantivesse quente, Emily colocou lamparinas acesas, sob a folha de zinco, pelo chão.

(…)
Lizzie, que ansiava por fazer o seu trabalho sem qualquer falha, não dispunha de conselhos. Perguntava a si própria qual seria o grau de submissão conveniente. Não tinha junto dela, em Gower Street, a mãe e a irmã de Deverell, tão carinhosas, nem se encontrava a sós com o pintor, como em Chelsea, no estúdio de Holman Hunt, quando o risco de abuso sexual, ou a sua suspeita, a induziam a um estado de completa rigidez. Ali, o instinto estava a ordenar-lhe que guardasse obediência absoluta. Uma coisa sabia: nunca mais ia voltar à loja de chapéus. Havia, de algum modo, uma lavagem sobre a vida anterior. Ofélia entrava-lhe na pele como se a água tivesse alguma qualidade osmótica e arrastasse consigo, num despejo, o episódio da costureirinha. E quando, um dia, as lamparinas se apagaram, ela, temendo perturbar Millais, continuou imersa na banheira, sem se queixar. Terminada a sessão, não conseguiu sequer erguer-se. Estava enregelada. Apesar das massagens com álcool e do porto que Emily lhe serviu, adoeceu.

(…)

Hélia Correia - Adoecer

sábado, 10 de abril de 2010


sabes, mãe. uma asa não deixa de bater
porque cai do corpo de um pássaro.
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o nome que nos dão, ao nascer,
fica nos retratos, nos envelopes intactos,
nos poemas que hás-de escrever.
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às vezes, é o medo que escreve,
outras é o vento, quase sempre
é o vento que escreve, mãe,
quase sempre é o medo.
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um cão em cada dedo - alice macedo campos

quinta-feira, 8 de abril de 2010


Jasão

E que diriam às falésias os barcos arrastados
sem que nenhuma onda viesse, ou vento soprasse,
nem maré crescesse para os libertar?
Diriam: como se corta o mar,
como se fende o destino?
Ao porto a que chegamos, chegamos sem saber.
E agora, que queremos regressar, como se diz o regresso,
quantas sílabas nos cabe inventar?
Diriam.

As falésias são apenas terra nua que fende a noite.
Pode ser que saibam, pode ser que não.

Ardem as trevas e outros lugares - Helena Carvalhão Buescu

domingo, 21 de março de 2010


esquecendo um dia os braços, procurei dar-te um nome, inventei nome falso mas real de ficção, cheguei mesmo à loucura (desabrida) do esquema para a história. estava tudo no esquema, o central é que não. e rasguei esquema e nome, que tu não respondias ao nome que inventara para ti. e como um sino falso de metal quebrado eram os nomes que sucessivamente te fui dando.

Ana Luísa Amaral – Se fosse um intervalo

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010



(…)
Com que pedra de sal
com que promessa
com que pássaro solto pela casa
com que folha de louro
com que sonho
com que lua entornada no alpendre
com que livro de quem
com que sonata

temperarei a dor da tua ausência
o silêncio
o vazio na minha cama
os gritos do meu corpo
o pão por repartir da minha alma

Com que chuva
lavarei o rumor dos teus passos
no magoado coração dos dias

Com que pranto
afogarei teu rasto
com que manto de lava
com que mar.

(…)

Rosa Lobato de Faria – A Gaveta de Baixo

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010


A direcção do olhar

Era uma vez um homem de olhar fugidio. Frequentemente revirava os olhos para cima, procurando seus pensamentos no alto. No alto do cérebro, no alto do céu ou no alto da inspiração seria impossível dizer-se, porque ele não tinha convicções seguras e definitivas: não era religioso mas admitia que talvez, sim, houvesse um ser, por aí, causante de tudo, porque não, porquê atribuirmos as leis do mundo ao mero acaso ou a uma cega organização da matéria? Porquê darmos a primazia ao nada ou à matéria inanimada, dizia, e achava que essa tendência humana para preterir o ser para o lugar do mero efeito ou consequência do não ser era um sintoma do masoquismo que acabava por se generalizar à maior parte dos actos humanos.
Com estes argumentos – aliás certeiramente opostos, ele podia ser um homem brilhante – não afirmava as paisagens divinas como origem de todo o fenómeno humano e, simultaneamente, também não conferia grande confiança à nossa espécie, julgando-a capaz dos absurdos mais notáveis, como esse de utilizar o próprio discurso do ser – do ser que fala e se pretende conhecedor de si, ordenador do resto – para o reduzir a comemoração de fenómenos menores do que o elocucionante ser.
Restava-lhe talvez esse refúgio sagrado e constantemente evocado ao longo dos tempos por filósofos, artistas, intelectuais: um secreto contacto entre os seres humanos e alguns fogos, ou energias, ou seres invisíveis, por aí espalhados, no éter, na sombra dos cantos das nossas casas; enfim, aquilo a que se chama inspiração e que é sempre uma estranha amálgama de restos de fé, ou de fé mal resolvida num ser pensante absolutamente maior que nós, e de rasgos humanistas profundamente comovidos perante o milagre anónimo que somos.
Quer dizer, parecia ser mesmo aí que ele buscava seus pensamentos quando revirava os olhos: no alto da inspiração, nessa amálgama entre o aqui e o acolá, talvez os astros ou na poeira cósmica ou no inconsciente colectivo, talvez na secreta alquimia de cada um de nós com todo o universo. Parecia: mas como ter a certeza? Como pode qualquer certeza estabelecer-se sobre a dúvida? Se interrogássemos este homem, que podia ser brilhante, sobre a natureza da inspiração, ele reviraria os olhos e buscaria no alto indefinido o conteúdo das suas definições.
Era por causa desse olhar revirado para o alto que a maioria das pessoas – as que têm tendências pragmáticas e por isso predominam no planeta – o escutava e o olhava sem grandes inquirições e concluía, apenas, que ele era um homem fugidio.

Havia um homem que olhava sempre os outros nos olhos, directo e cândido, e que com essa arma decidira dedicar-se ao negócio.
O homem de olhar fugidio queria vender o carro, já bastante gasto, para comprar um novo, e este homem pragmático, um construtor em vias de ascensão, pensava comprar o carro do homem de olhar fugidio: seria a primeira viatura da sua empresa recém-formada. Idealizava já pintado na porta o logótipo que ele e a sua mulher tinham inventado num serão. Claro que não lhe chamavam logótipo, porque não conheciam a palavra, chamavam-lhe “umas letras jeitosas”, e achavam que as suas “letras jeitosas” competiam com quaisquer umas, das que apareciam por aí, na televisão e nos cartazes da publicidade. Este construtor e a mulher eram daquelas pessoas que não reviram os olhos para lado nenhum, têm sempre a certeza de tudo porque, na sua pragmática visão, o que existe está à vista e o que não se vê não existe.. calhava bem um carro assim, pensavam, já um pouco estafado mas bem conservado, para carro de serviço.
Mas o homem pragmático acabou por desistir da compra. O homem não olha nos olhos, confidenciara à mulher, tem aquela mania esquisita de revirar os olhos para cima como se quisesse fugir para qualquer lado, não confio em gente assim; acho que ele esconde alguma coisa. Talvez o carro tivesse tido algum desastre sério e tenha o eixo torcido, ou o próprio chassis todo empenado, quem sabe?
E o homem que revirava os olhos acabou por vender o carro muito mal, a um negociante de automóveis que imediatamente o vendeu pelo dobro do preço. Confirmou assim, este homem em busca de inspiração mas pouco inspirado nos detalhes práticos, uma das firmes opiniões que tinha sobre si próprio e sobre o mundo: que não tinha sorte nem jeito para os negócios, e que o mundo pertencia aos que sabem enganar os outros.
Não soube nunca que o construtor em vias de ascensão acabara por comprar, a um homem de olhar directo e sorriso franco, um carro em mau estado e mais caro do que o seu.


Maria Isabel Barreno – Os sensos Incomuns

domingo, 3 de janeiro de 2010

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E chega um dia em que reconhecemos
finalmente
a injustiça das palavras –
exactamente as mesmas para quem vai e para quem fica

um dia
em que não há mais passado para contar
nem mais futuro para viver

apenas uma velha cantiga a embalar
uma casa desaparecida
e este limbo ocasional
onde o corpo
espera que anoiteça


Alice Vieira – O que dói às aves

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