
Do Prefácio
Há uma escrita de mulheres. Confusa e embaraçada como elas, quando é uma escrita de mulheres. Eu atrevo-me a dizer que o supremo estilo das mulheres é o estilo místico; porque, então, tudo o que toca ao amor é a mais absurda visão e um acordo de profecias.
Mas, no mais das vezes, as mulheres escrevem segundo o modelo que obtiveram dos homens. Para eles, as mulheres têm de ser sensuais, complicadas, motivo de reflexão, submetidas ao obstáculo da reflexão. Mas não são assim. Os melhores livros de amor são feitos com o que os homens ignoram sobre as mulheres. Ignoram quase tudo.
Agora começa a haver uma literatura feminina, uma forma de a mulher se interrogar; mas ainda só balbucia e, quando tem mais sucesso, é quando se aproxima da anedota sexual de Margarida de Navarra.; quando parece à vontade no papel de marafona e espreitadora de alcovas. De repente, tudo pode mudar. Como quando Filomena (o rouxinol da fábula, porque Filomena é rouxinol e canta para tirar ao tempo o seu significado de acção, de discurso) intervém na página 75: “ Apesar disso, narradora, como te chamas na vida real? Eu? Mariana”.
Mariana é o símbolo, e Ana, sua metade, em vez do seu duplo, completa o enigma. Ambas pressentem a natureza duma mulher, mas não vão senão até à tentação de contar essa verdade que só pertence às mulheres. Todavia – haverá uma verdade feminina? Como se perguntássemos se as mulheres têm alma, se não são feitas de humor frio, impróprio das actividades intelectuais, como se disse. Não é tão absurdo como parece. A mulher é lançada para desertos onde a alma morreria de sede; onde a mente ficava sufocada se lhes conhecesse a solidão. Nada há de mais solitário que uma mulher; por isso é tão disponível – porque não sente profundamente a autoridade de nada no mundo. Ela não constrói termo de comparação. Quando é edificante e santa, isso não resulta exemplar; é uma experiência da solidão. Nunca é sujeita a nenhum poder; apieda-se, não ama. Sofre, mas não é vítima.
Filomena Cabral, no seu livro Tarde de mais Mariana, está perto de ausentar-se da tradicional literatura feminina, que é um rebuçado de ovos dos conventos de clarissas ou é uma apologia do amor para senhores velhos, com verdes amostras de libido. “Mereceste mil vezes a solidão” – diz Mariana. E diz:” por ti me prendo ao mundo”, com lucidez que até está a mais no texto elaborado. A verdade está aí, como uma gota de chuva no ar seco e na paisagem formidavelmente limpa e serena. A mulher disse a sua verdade: “por ti me prendo ao mundo”. Pelos olhos do homem ela vê, pelo espírito do homem ela deseja e ama. Mas não é ela quem ama nem deseja.
Não sei, realmente não sei, donde veio a mulher com o seu humor frio que a escola dos teólogos situa bem longe dos domínios da alma. Não há redacção definitiva sobre a mulher, enquanto não houver uma autêntica literatura feminina. Será que é tarde de mais Mariana? Será que já era tarde no tempo dourado e tempo de amor em que o homem foi criado?
Agustina Bessa-Luís
29 de Maio de 1985
Tarde de mais Mariana, de Filomena Cabral