A direcção do olhar
Era uma vez um homem de olhar fugidio. Frequentemente revirava os olhos para cima, procurando seus pensamentos no alto. No alto do cérebro, no alto do céu ou no alto da inspiração seria impossível dizer-se, porque ele não tinha convicções seguras e definitivas: não era religioso mas admitia que talvez, sim, houvesse um ser, por aí, causante de tudo, porque não, porquê atribuirmos as leis do mundo ao mero acaso ou a uma cega organização da matéria? Porquê darmos a primazia ao nada ou à matéria inanimada, dizia, e achava que essa tendência humana para preterir o ser para o lugar do mero efeito ou consequência do não ser era um sintoma do masoquismo que acabava por se generalizar à maior parte dos actos humanos.
Com estes argumentos – aliás certeiramente opostos, ele podia ser um homem brilhante – não afirmava as paisagens divinas como origem de todo o fenómeno humano e, simultaneamente, também não conferia grande confiança à nossa espécie, julgando-a capaz dos absurdos mais notáveis, como esse de utilizar o próprio discurso do ser – do ser que fala e se pretende conhecedor de si, ordenador do resto – para o reduzir a comemoração de fenómenos menores do que o elocucionante ser.
Restava-lhe talvez esse refúgio sagrado e constantemente evocado ao longo dos tempos por filósofos, artistas, intelectuais: um secreto contacto entre os seres humanos e alguns fogos, ou energias, ou seres invisíveis, por aí espalhados, no éter, na sombra dos cantos das nossas casas; enfim, aquilo a que se chama inspiração e que é sempre uma estranha amálgama de restos de fé, ou de fé mal resolvida num ser pensante absolutamente maior que nós, e de rasgos humanistas profundamente comovidos perante o milagre anónimo que somos.
Quer dizer, parecia ser mesmo aí que ele buscava seus pensamentos quando revirava os olhos: no alto da inspiração, nessa amálgama entre o aqui e o acolá, talvez os astros ou na poeira cósmica ou no inconsciente colectivo, talvez na secreta alquimia de cada um de nós com todo o universo. Parecia: mas como ter a certeza? Como pode qualquer certeza estabelecer-se sobre a dúvida? Se interrogássemos este homem, que podia ser brilhante, sobre a natureza da inspiração, ele reviraria os olhos e buscaria no alto indefinido o conteúdo das suas definições.
Era por causa desse olhar revirado para o alto que a maioria das pessoas – as que têm tendências pragmáticas e por isso predominam no planeta – o escutava e o olhava sem grandes inquirições e concluía, apenas, que ele era um homem fugidio.
Havia um homem que olhava sempre os outros nos olhos, directo e cândido, e que com essa arma decidira dedicar-se ao negócio.
O homem de olhar fugidio queria vender o carro, já bastante gasto, para comprar um novo, e este homem pragmático, um construtor em vias de ascensão, pensava comprar o carro do homem de olhar fugidio: seria a primeira viatura da sua empresa recém-formada. Idealizava já pintado na porta o logótipo que ele e a sua mulher tinham inventado num serão. Claro que não lhe chamavam logótipo, porque não conheciam a palavra, chamavam-lhe “umas letras jeitosas”, e achavam que as suas “letras jeitosas” competiam com quaisquer umas, das que apareciam por aí, na televisão e nos cartazes da publicidade. Este construtor e a mulher eram daquelas pessoas que não reviram os olhos para lado nenhum, têm sempre a certeza de tudo porque, na sua pragmática visão, o que existe está à vista e o que não se vê não existe.. calhava bem um carro assim, pensavam, já um pouco estafado mas bem conservado, para carro de serviço.
Mas o homem pragmático acabou por desistir da compra. O homem não olha nos olhos, confidenciara à mulher, tem aquela mania esquisita de revirar os olhos para cima como se quisesse fugir para qualquer lado, não confio em gente assim; acho que ele esconde alguma coisa. Talvez o carro tivesse tido algum desastre sério e tenha o eixo torcido, ou o próprio chassis todo empenado, quem sabe?
E o homem que revirava os olhos acabou por vender o carro muito mal, a um negociante de automóveis que imediatamente o vendeu pelo dobro do preço. Confirmou assim, este homem em busca de inspiração mas pouco inspirado nos detalhes práticos, uma das firmes opiniões que tinha sobre si próprio e sobre o mundo: que não tinha sorte nem jeito para os negócios, e que o mundo pertencia aos que sabem enganar os outros.
Não soube nunca que o construtor em vias de ascensão acabara por comprar, a um homem de olhar directo e sorriso franco, um carro em mau estado e mais caro do que o seu.
Maria Isabel Barreno – Os sensos Incomuns
Era uma vez um homem de olhar fugidio. Frequentemente revirava os olhos para cima, procurando seus pensamentos no alto. No alto do cérebro, no alto do céu ou no alto da inspiração seria impossível dizer-se, porque ele não tinha convicções seguras e definitivas: não era religioso mas admitia que talvez, sim, houvesse um ser, por aí, causante de tudo, porque não, porquê atribuirmos as leis do mundo ao mero acaso ou a uma cega organização da matéria? Porquê darmos a primazia ao nada ou à matéria inanimada, dizia, e achava que essa tendência humana para preterir o ser para o lugar do mero efeito ou consequência do não ser era um sintoma do masoquismo que acabava por se generalizar à maior parte dos actos humanos.
Com estes argumentos – aliás certeiramente opostos, ele podia ser um homem brilhante – não afirmava as paisagens divinas como origem de todo o fenómeno humano e, simultaneamente, também não conferia grande confiança à nossa espécie, julgando-a capaz dos absurdos mais notáveis, como esse de utilizar o próprio discurso do ser – do ser que fala e se pretende conhecedor de si, ordenador do resto – para o reduzir a comemoração de fenómenos menores do que o elocucionante ser.
Restava-lhe talvez esse refúgio sagrado e constantemente evocado ao longo dos tempos por filósofos, artistas, intelectuais: um secreto contacto entre os seres humanos e alguns fogos, ou energias, ou seres invisíveis, por aí espalhados, no éter, na sombra dos cantos das nossas casas; enfim, aquilo a que se chama inspiração e que é sempre uma estranha amálgama de restos de fé, ou de fé mal resolvida num ser pensante absolutamente maior que nós, e de rasgos humanistas profundamente comovidos perante o milagre anónimo que somos.
Quer dizer, parecia ser mesmo aí que ele buscava seus pensamentos quando revirava os olhos: no alto da inspiração, nessa amálgama entre o aqui e o acolá, talvez os astros ou na poeira cósmica ou no inconsciente colectivo, talvez na secreta alquimia de cada um de nós com todo o universo. Parecia: mas como ter a certeza? Como pode qualquer certeza estabelecer-se sobre a dúvida? Se interrogássemos este homem, que podia ser brilhante, sobre a natureza da inspiração, ele reviraria os olhos e buscaria no alto indefinido o conteúdo das suas definições.
Era por causa desse olhar revirado para o alto que a maioria das pessoas – as que têm tendências pragmáticas e por isso predominam no planeta – o escutava e o olhava sem grandes inquirições e concluía, apenas, que ele era um homem fugidio.
Havia um homem que olhava sempre os outros nos olhos, directo e cândido, e que com essa arma decidira dedicar-se ao negócio.
O homem de olhar fugidio queria vender o carro, já bastante gasto, para comprar um novo, e este homem pragmático, um construtor em vias de ascensão, pensava comprar o carro do homem de olhar fugidio: seria a primeira viatura da sua empresa recém-formada. Idealizava já pintado na porta o logótipo que ele e a sua mulher tinham inventado num serão. Claro que não lhe chamavam logótipo, porque não conheciam a palavra, chamavam-lhe “umas letras jeitosas”, e achavam que as suas “letras jeitosas” competiam com quaisquer umas, das que apareciam por aí, na televisão e nos cartazes da publicidade. Este construtor e a mulher eram daquelas pessoas que não reviram os olhos para lado nenhum, têm sempre a certeza de tudo porque, na sua pragmática visão, o que existe está à vista e o que não se vê não existe.. calhava bem um carro assim, pensavam, já um pouco estafado mas bem conservado, para carro de serviço.
Mas o homem pragmático acabou por desistir da compra. O homem não olha nos olhos, confidenciara à mulher, tem aquela mania esquisita de revirar os olhos para cima como se quisesse fugir para qualquer lado, não confio em gente assim; acho que ele esconde alguma coisa. Talvez o carro tivesse tido algum desastre sério e tenha o eixo torcido, ou o próprio chassis todo empenado, quem sabe?
E o homem que revirava os olhos acabou por vender o carro muito mal, a um negociante de automóveis que imediatamente o vendeu pelo dobro do preço. Confirmou assim, este homem em busca de inspiração mas pouco inspirado nos detalhes práticos, uma das firmes opiniões que tinha sobre si próprio e sobre o mundo: que não tinha sorte nem jeito para os negócios, e que o mundo pertencia aos que sabem enganar os outros.
Não soube nunca que o construtor em vias de ascensão acabara por comprar, a um homem de olhar directo e sorriso franco, um carro em mau estado e mais caro do que o seu.
Maria Isabel Barreno – Os sensos Incomuns