(…)
«Gabriel disse-me uma vez que, ao conhecê-la, viu diante de si o seu destino», conta Ford Madox Brown no seu diário. No puro plano da realidade, ele vira apenas uma rapariga que a pobreza e a cor ticiano do cabelo logo à nascença haviam condenado.
(…)
Havia nela como que uma falha que provinha talvez da exaustão e da deficiência alimentar, dando-lhe um ar furtivo, de gazela, que fez cair as apresentações.
Lizzie passou para detrás da porta abandonada que servia de biombo e regressou vestida de rapaz. Apanhara o cabelo sobre a nuca. Mostrava as pernas e isso produzia um curioso efeito assexuado. Gabriel adiantou-se e começou a ocupar-se da figura que faltava, não nos papéis de esboço, mas na tela. As personagens masculinas já se achavam muito avançadas. Ele posara para o bobo. Os Pré-Rafaelitas provocavam situações de entreajuda em que existia, a par da exibição, sinceridade.
Deverell e Millais arrefeciam, de pé, imóveis e a perder entusiasmo. Viam em Lizzie a rapariga magra e de feições irregulares que até então não tinham visto. A narrativa de Walter, que avassalara o próprio narrador, deixava de exercer influência e a temperatura dos seus corpos ressentia-se. Esfregavam os braços, percebendo toda a impiedade do Inverno. Observavam Rossetti e Miss Sid que estavam sós, naquilo que talvez fosse o encontro do pintor com o modelo. Porém sentiam desconforto, como se presenciassem uma cena íntima.
Lizzie, que mantivera a posição sem vacilar nos dias anteriores, vergava as costas, inclinada para o chão. Era um abatimento poderoso sob o qual circulava alguma glória. John Everett Millais compreendeu a origem do fascínio de Miss Sid. Tinha um corpo selado na tragédia, um apetite sacrificial. «Hei-de pintar esta mulher», pensou. Imaginava-a num cenário de narcisos. Não sabia que estava a vê-la morta.
(…)
A verdade é que, sem o contributo da senhora Millais, «Ophelia» nunca seria o quadro que nós hoje conhecemos. O vestido bordado de pedraria, que John descobriu num bricabraque e pelo qual, apesar de velho e sujo, pagou uma quantia razoável, foi pessoalmente restaurado pela mãe. Também se deve a Emily a invenção da banheira em que Lizzie mergulhou. O filho queria ter à vista o efeito da água nos cabelos da jovem morta, da impregnação lenta no tecido, da refracção dos braços, já cobertos. Imóvel, a modelo permanecia naquela submersão quase total, no Dezembro londrino, que normalmente não inspiraria um qualquer pensamento de cuidado, a provação parecia desumana. Para que a água se mantivesse quente, Emily colocou lamparinas acesas, sob a folha de zinco, pelo chão.
(…)
Lizzie, que ansiava por fazer o seu trabalho sem qualquer falha, não dispunha de conselhos. Perguntava a si própria qual seria o grau de submissão conveniente. Não tinha junto dela, em Gower Street, a mãe e a irmã de Deverell, tão carinhosas, nem se encontrava a sós com o pintor, como em Chelsea, no estúdio de Holman Hunt, quando o risco de abuso sexual, ou a sua suspeita, a induziam a um estado de completa rigidez. Ali, o instinto estava a ordenar-lhe que guardasse obediência absoluta. Uma coisa sabia: nunca mais ia voltar à loja de chapéus. Havia, de algum modo, uma lavagem sobre a vida anterior. Ofélia entrava-lhe na pele como se a água tivesse alguma qualidade osmótica e arrastasse consigo, num despejo, o episódio da costureirinha. E quando, um dia, as lamparinas se apagaram, ela, temendo perturbar Millais, continuou imersa na banheira, sem se queixar. Terminada a sessão, não conseguiu sequer erguer-se. Estava enregelada. Apesar das massagens com álcool e do porto que Emily lhe serviu, adoeceu.
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«Gabriel disse-me uma vez que, ao conhecê-la, viu diante de si o seu destino», conta Ford Madox Brown no seu diário. No puro plano da realidade, ele vira apenas uma rapariga que a pobreza e a cor ticiano do cabelo logo à nascença haviam condenado.
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Havia nela como que uma falha que provinha talvez da exaustão e da deficiência alimentar, dando-lhe um ar furtivo, de gazela, que fez cair as apresentações.
Lizzie passou para detrás da porta abandonada que servia de biombo e regressou vestida de rapaz. Apanhara o cabelo sobre a nuca. Mostrava as pernas e isso produzia um curioso efeito assexuado. Gabriel adiantou-se e começou a ocupar-se da figura que faltava, não nos papéis de esboço, mas na tela. As personagens masculinas já se achavam muito avançadas. Ele posara para o bobo. Os Pré-Rafaelitas provocavam situações de entreajuda em que existia, a par da exibição, sinceridade.
Deverell e Millais arrefeciam, de pé, imóveis e a perder entusiasmo. Viam em Lizzie a rapariga magra e de feições irregulares que até então não tinham visto. A narrativa de Walter, que avassalara o próprio narrador, deixava de exercer influência e a temperatura dos seus corpos ressentia-se. Esfregavam os braços, percebendo toda a impiedade do Inverno. Observavam Rossetti e Miss Sid que estavam sós, naquilo que talvez fosse o encontro do pintor com o modelo. Porém sentiam desconforto, como se presenciassem uma cena íntima.
Lizzie, que mantivera a posição sem vacilar nos dias anteriores, vergava as costas, inclinada para o chão. Era um abatimento poderoso sob o qual circulava alguma glória. John Everett Millais compreendeu a origem do fascínio de Miss Sid. Tinha um corpo selado na tragédia, um apetite sacrificial. «Hei-de pintar esta mulher», pensou. Imaginava-a num cenário de narcisos. Não sabia que estava a vê-la morta.
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A verdade é que, sem o contributo da senhora Millais, «Ophelia» nunca seria o quadro que nós hoje conhecemos. O vestido bordado de pedraria, que John descobriu num bricabraque e pelo qual, apesar de velho e sujo, pagou uma quantia razoável, foi pessoalmente restaurado pela mãe. Também se deve a Emily a invenção da banheira em que Lizzie mergulhou. O filho queria ter à vista o efeito da água nos cabelos da jovem morta, da impregnação lenta no tecido, da refracção dos braços, já cobertos. Imóvel, a modelo permanecia naquela submersão quase total, no Dezembro londrino, que normalmente não inspiraria um qualquer pensamento de cuidado, a provação parecia desumana. Para que a água se mantivesse quente, Emily colocou lamparinas acesas, sob a folha de zinco, pelo chão.
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Lizzie, que ansiava por fazer o seu trabalho sem qualquer falha, não dispunha de conselhos. Perguntava a si própria qual seria o grau de submissão conveniente. Não tinha junto dela, em Gower Street, a mãe e a irmã de Deverell, tão carinhosas, nem se encontrava a sós com o pintor, como em Chelsea, no estúdio de Holman Hunt, quando o risco de abuso sexual, ou a sua suspeita, a induziam a um estado de completa rigidez. Ali, o instinto estava a ordenar-lhe que guardasse obediência absoluta. Uma coisa sabia: nunca mais ia voltar à loja de chapéus. Havia, de algum modo, uma lavagem sobre a vida anterior. Ofélia entrava-lhe na pele como se a água tivesse alguma qualidade osmótica e arrastasse consigo, num despejo, o episódio da costureirinha. E quando, um dia, as lamparinas se apagaram, ela, temendo perturbar Millais, continuou imersa na banheira, sem se queixar. Terminada a sessão, não conseguiu sequer erguer-se. Estava enregelada. Apesar das massagens com álcool e do porto que Emily lhe serviu, adoeceu.
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Hélia Correia - Adoecer
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