Porém, o que dói é a ausência de dor na face dos mortos: hirtos na fina porcelana do seu rosto, rígidos no vento da sua pedra. Buracos negros as suas pálpebras ante o choro das mulheres, a devastação dos filhos. Sentissem eles as pulsações dos ventos, a inquietação dos cães, a ruína dos canteiros, o abandono dos trigos e das vinhas! Se eles soubessem quanto apascentamos a memória da sua transumância pelos lugares que pisaram, e como se lhes agiganta a cera das figuras, depois da partida dos seus corpos minguados! Mas nenhum bálsamo nos dão em troca de tudo o que lhes damos; tudo se perde no gesto imóvel, para sempre desenhado. Esse silêncio compulsivo é o justo preço a pagar pela mais pura e absurda decantação da alma.
O nome dos Mortos seguido de Biografia das Sombras – Fernando de Castro Branco
quinta-feira, 26 de junho de 2008
Quais são as fronteiras entre a liberdade e a dependência? De que material erótico se faz a inocência? E entre o sonho e o tempo, entre o real e o quotidiano que o transcende, que teia se pratica? De que modo os símbolos se reflectem e se incluem no espelho das coisas?
Boi Vermelho - Catarina Fonseca
domingo, 22 de junho de 2008
«Sonhamos enquanto vemos. Vemos enquanto sonhamos. Mas não estaremos sempre no mesmo lusco-fusco? E não é apenas de noite que o sol atravessa a Terra para nos iluminar? E não transpõem os demónios todos os umbrais da luminosidade?»
Botho Strauss – Fragmentos da Incompreensão
terça-feira, 17 de junho de 2008
424 Quando estiveres cansado de olhar uma flor, uma criança, uma pedra, quando estiveres cansado ou distraído de ouvir um pássaro a explicar o ser, quando te não intrigar o existirem coisas e numa noite de céu limpo nenhuma estrela te dirigir a palavra, quando estiveres farto de saberes que existes e não souberes que existes, quando não reparares que nunca reparaste no azul do mar, quando estiveres farto de querer saber o que nunca saberás, se nunca o amanhecer amanheceu em ti ou já não, se nunca amaste a luz e só o que ela ilumina, se nunca nasceste por ti e não apenas pelos que te fizeram nascer, se nunca soubeste que existias mas apenas o que exististe com esse existir, quando, se -, porque temes então a morte, se já estás morto?
554 Mas a tua estrela pode não estar no céu. Põe-na lá.
Pensar - Vergílio Ferreira
sexta-feira, 13 de junho de 2008
NÃO DIZIA PALAVRAS
Não dizia palavras. Aproximava apenas um corpo interrogante, Porque ignorava que o desejo é uma pergunta Cuja resposta não existe, Uma folha cujo ramo não existe, Um mundo cujo céu não existe.
Entre os ossos a angústia abre caminho, Ergue-se pelas veias Até abrir na pele Jorros de sonho Feitos carne interrogando as nuvens.
Um contacto ao passar, Um fugidio olhar no meio de sombras, Bastam para que o corpo se abra em dois, Ávido de receber em si mesmo Outro corpo que sonhe; Metade e metade, sonho e sonho, carne e carne, Iguais em figura, iguais em amor, iguais em desejo.
Embora seja só uma esperança, Porque o desejo é uma pergunta cuja resposta ninguém sabe.
Antologia Poética – Luís Cernuda
quinta-feira, 5 de junho de 2008
ENCOMENDA
Desejo uma fotografia como esta – o senhor vê? – como esta: em que para sempre me ria com um vestido de eterna festa.
Como tenho a testa sombria, derrame luz na minha testa. Deixe esta ruga, que me empresta um certo ar de sabedoria.
Não meta fundos de floresta nem de arbitrária fantasia… Não… Neste espaço que ainda resta, ponha uma cadeira vazia