(…) de repente, o caixão estremece, uma sombra levanta-se e caminha, sonâmbula, sai do quarto pela porta desenhada na parede.
o silêncio é definitivo.
eis o sofrimento da boca queimada pelo sarro oceânico.
a dor invadia-te. um cristal flutua no enxofre de remotas cidades.
sentias a tua mão abrir a porta desenhada.
sempre viveste em resíduos de cidades, ruínas da pele, finos cordéis de terra fértil, mistérios…
sentias uma feroz necessidade de ter medo, e pela casa atravessada de ecos, de lumes, respiravas. respiravas o ar insalubre do próximo porto.
permanecemos aqui, neste quarto, onde a escuridão é eterna claridade. fora deste lugar nunca viste o mar.
mas tudo isto se passou noutro tempo, noutro lugar. e a tua boca deixava na minha um travo de asas salgadas…
breves nuvens. o entardecer sobre o corpo estendido na erva fresca do sonho. abrias nas pedras fulvas da praia um sítio para esconder a paixão.
cansei-me de te sonhar. cansei-me do sangue e da chuva, da memória dessas rotas difíceis.
donde te escrevo apenas uma parte de mim ainda não partiu.
encosto a alma à quilha do navio. deixo-me ir no vaivém das marés, e da fala.
a noite singra a pele.
e tu escondias a cara num pano branco e quando fitavas as mãos eu sentia medo de um deus.
estávamos sentados à sombra dos tamarindos. ouvíamos uma voz e não sonhávamos.
nenhum de nós sabia se o sonho, ou a morte, nos conduziria a algum porto de felicidade.
não me lembro o que aconteceu a seguir.
a noite deixava-se habitar por um silêncio escorregadio.
veio-me então ao pensamento o grande porto do sul onde aportaras e dizias ter sido feliz.
as horas começaram a cair umas sobre as outras, iguais, sem frémito, melancólicas.
quando te digo que vou de novo partir, perguntas-me: morre-se porquê?
caminhamos em direcções opostas. caminhamos sem destino pela cidade.
a febre aniquila-nos.
existem Índias por descobrir, no segredo da noite dos nossos desastres.
caminhamos neste espaço de penumbras e de incertezas – onde a fala já não cintila e as palavras são de cinza.
sobre as tuas mãos a sombra de um corpo, ou de um navio. o silêncio das viagens cumpridas. e no meio deste silêncio uma ideia de voz, uma treva agarrada à memória.
foi então que dei por mim a existir para lá da tua morte, como se asfixiasse. mas o passado não é senão um sonho. uma brincadeira com clepsidras avariadas e algum sangue.
não vale a pena estar triste.
todas as histórias, todas as mortes, acabam por se apagar.
um barco tremeluz nas cortinas do quarto.
o horizonte é negro. a luz do dia extingue-se subitamente.
as mãos com que te toco, luminoso afogado, não são verdadeiras nem reais – porque o tempo todo talvez esteja onde existimos, embora saibamos que nesse lugar nunca houve tempo nenhum.
O Último Coração do Sonho – Al Berto
do lugar dos outros
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
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