do lugar dos outros

do lugar dos outros

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

As mulheres livres e libertadoras correm com os lobos. Galgam o mundo montadas nas suas ilhargas esguias e frementes, febris e lustrosas sob os seus dedos, que ficam a cheirar a rosmaninho e a cedro. Refrescam-se nas suas sombras, aninham-se nas suas grutas e vivem nos negrumes matizados de luz das florestas espessas: respirando as folhas raiadas, bebendo o orvalho cintilante, devorando os frutos proibidos, quando descobrem a árvore do conhecimento.

Recusam o carcereiro da casa. E mantêm acesa a chama da imagem feminina das lendas, dos contos de fadas, dos mitos ancestrais: a deusa, a vestal, a amazona, «aquela dos bosques», a loba. Seres mitológicos, provavelmente irrecuperáveis e inatingíveis. É de tudo isto que nos fala o excelente trabalho da psicanalista americana Clarissa Pinkola Estés, Mulheres que correm com os lobos; por entre mitos milenários e histórias do arquétipo da mulher selvagem, uma espécie em vias de extinção nos nossos dias. Um livro feminista empolgante, galvanizante, que fala de mulheres jubilosas, desvenda sinais, segue pistas, descobre passos encobertos, tapados pela poeira do tempo. Interpreta narrativas antigas, fábulas e legendas fantásticas.

Interpretações essas através das quais a autora identifica o arquétipo da mulher selvagem já referido atrás, como sendo a essência da alma feminina, propondo em seguida o assumir desse longínquo passado que agora nos escapa, caso desejemos vir a atingir uma real e autêntica plenitude: «Quando as mulheres reafirmam o seu relacionamento com a natureza selvagem, recebem o dom de dispor de uma observadora interna permanente, uma sábia, uma visionária, uma oráculo, uma inspiradora, uma intuitiva, uma criadora, uma inventora e uma ouvinte que guia.». Seres intuitivos, sensíveis e orgulhosos, dotados de uma percepção aguçada, de uma «determinação feroz e de uma extrema coragem», que segundo Clarissa Estés têm bastante em comum com os lobos. E tal como estes, ao longo dos séculos foram perseguidas, cercadas, acossadas e inúmeras vezes mortas. Deixando claro o modo ostensivo como a psicologia tradicional se mantém lacónica ou mesmo omissa, no que diz respeito a questões importantes para as mulheres, tais como: «o aspecto arquetípico, o intuitivo, o sexual, a sabedoria da mulher, seu fogo criador».

Mas, Mulheres que correm com os lobos é sobretudo um inteligente e corajoso ensaio, completamente diverso do que é habitual publicar-se entre nós. Um texto desafiador, que parte de uma corrente actual do feminismo, que recorre aos saberes colaterais para seguir as pistas e entender os sinais que nos levam até ao passado distante das mulheres, a fim de melhor se entender a causa da feroz e deliberada destruição, que a partir de certa altura passou a marcar todo o seu percurso, até chegar à sua anulada existência actual.

Neste livro, há a recuperação de uma sexualidade sagrada, ensinam-se rituais de iniciação e fertilidade, refazendo a abordagem das deusas das culturas matriarcais. Dando-nos a ver o ser que continua a habitar, apesar de tudo, no subterrâneo selvagem da rebelde e esquiva natureza feminina.

Maria Teresa Horta, sobre o livro: Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Há no mundo uma falha. Os poentes são labaredas roxas: resquícios de escarlate, dois, três jactos violetas que se estendem pelo céu - uma maravilha quimérica. A primavera prolonga-se: superabundância de flores nas árvores, espiritualidade na matéria, como se as árvores fossem morrer. Mais flores, mais poentes onde o ouro e o roxo predominam, mais gritos no mundo, mais vulcões de cores, que pressagiam catástrofes, e um ruído apagado, esquisito, insuportável dentro de nós próprios, que só comparo ao som de uma borboleta esvoaçando contra as paredes de um vaso.


É a morte que faz falta à vida.


HÚMUS - Raul Brandão