do lugar dos outros

do lugar dos outros

sábado, 31 de janeiro de 2009


O que me sustenta é a beleza. Rezo ao deserto para que continue a receber-me; rezo ao mar, e em especial ao grande e sereno Oceano Índico, para que não deixe nunca de me consolar com a sua voz de espuma; rezo às papaias pela sua carne e às goiabas pelo seu perfume. Rezo ao deus indiferente dos gatos porque os fez magníficos e ao das baleias e das vacas pela sua mansidão. Sou mulher: rezo a tudo o que floresce e frutifica - nada que cante ou que dance me é indiferente. Nada que fira ou destrua me é semelhante.

Faíza Hayat – O Evangelho segundo a serpente

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segunda-feira, 26 de janeiro de 2009



Regressas pelos espelhos abraçado à névoa de um tempo breve, aproximas-te da superfície, contemplo o rosto emergente, nenúfar lançado no vórtice de círculos concêntricos; recordo um perfume.

Necessário seria conheceres evanescências incrustadas na porta sólida da memória: e sempre me detenho no umbral. Como explicar a recordação de ti, de nós sabemos sempre pouco, nada de nossas auras, eflúvios, deles nos falariam outros quase sempre mudos ou desinteressados. A avidez, atenta, com dedos longos arrepanha, puxa para si, sortilégios abandonados por complacência, selecciona-os, guarda-os como avarento para possibilitar-se pequenas trocas, comércio mesquinho com os que experimentam fome de nós. Por ela te recordo, olho, inebrias, inquietas.

Os espelhos de nada sabem na superfície lisa.

Ter-se-ão agitado quando mergulhamos neles as nossas imagens enlaçadas, retido o nosso olhar? Dois espelhos venezianos, distanciados de uma parede a outra parede, trocaram-se imagens em jogos de eternidade, nada mais. A fragilidade habita os espelhos, em nós se enreda, por isso te digo, Amado, o tempo urge, passa, goteja e engana. Pensa clepsidras, relógios de sol, analisa atento urgências e desvarios, medo e fuga: submete-os.

Aguardarei, Amado, a hora em que os espelhos parecem negros e fundos como cisternas, e experimentarei o queixume, talvez regresse o eco de palavras escutadas em ressonâncias doces, e sofro a tentação de destruí-los para ver-te em mil reflexos. Lanternas na noite, doem-me os olhos na intermitência: se o desespero me ergue as pálpebras, a tristeza neles me pousa os dedos de seda.

A claridade vai alterando o cenário: vejo a cadeira onde sentado sorriste; ajoelhada descalcei-te.

(que dizer da Morte para além do luto, dos sinais visíveis ou risíveis, dela nada sei, sim do silêncio-dique, de torrentes de palavras sempre desviadas de seu curso, nunca em ti desaguando.)

Atravesso desertos, Amado, não os que atravessas; assim, o desencontro.

Filomena Cabral - AMATUS

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009



(…)

Paixão inenarrável plena de sustos e refúgios. Em vão, direi cardumes iridescentes e velozes, o emaranhado de vibráteis remos minúsculos em seus flancos. A dor indescritível escorada na ausência, a beleza intoxicadora dos sentidos, o véu húmido em teus olhos, a linha inapelável dos lábios. Separam-nos muros de gaze onde esfacelaríamos os dedos, porventura ausentes, ávidos ou tristes, assustados na presença da mão. Inocularia em ti a surpresa do gesto, a delícia de deixar-me escorrer pelos teus contornos, tomada de assalto por nuvens graníticas de ilusões sedimentadas e frustradas, endurecidas pelo tempo redutor.
Poderia abandonar-te junto de nardos, confundido em sua brancura ou outra cor, em evanescências múltiplas, e nelas incluiria o odor de um corpo adormecido tingido de desencanto, o rosto enfeitado de cristais inesperados.
Como rio surdo à própria passagem, devoras a distância fluida e contornas pequenas ilhas solitárias, afagando-as e afogando-as na brandura irresistível de abraços densos. Teimo em divisar os pés dos deuses, sempre os escondem entre floras estranhíssimas; dos lábios talvez lhes pendam luas pequenas em quarto minguante mostradas no avesso de si.
Gostaria de narrar a dor, desmontar o medo, contudo cavalgo em seu dorso: as mãos esfaceladas claudicam.
Flutuo no silêncio, imponderável, na pretensão do sopro, diviso-me submersa no desejo, esbracejante e frágil, ansiosa como afogado: aguarda-me uma praia e não sei se distinguiria os teus ombros idênticos a fluidas muralhas, ausentes de besteiros e despidas de pequenas ervas tenras e frágeis, trama de tapete irresistível.
Tudo o mais seria paixão inenarrável, desabitada, com as marcas de todas as dores e prazeres, deixadas por outros nómadas, sedentos de paisagem como tu. Assim eu.
Os deuses entenderam atribuir aos homens a dor como alimento indispensável, mesmo que pelo seu contrário. O prazer transborda, afoga e desaparece, absorvido pela presença insubstituível do corpo, pele, ou na ausência cantada, vibrátil, forjada em presságios: assim o regresso fatigado, ou insofismável refúgio.

(…)

Filomena Cabral – Elegia para um corpo adormecido

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009



Dormir, sim,
quando o silêncio
dói. Mas nunca
se dorme quando
o amor
é uma insónia. Ninguém
ama de olhos
fechados.

Albano Martins – Palinódias, Palimpsestos

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009



(…)

A maior parte das gaivotas não se preocupa em aprender mais do que os simples factos do voo – como ir da costa à comida e voltar. Para a maioria, o importante não é voar mas comer. Para esta gaivota, contudo, o importante não era comer, mas voar.

(…)

A História de Fernão Capelo Gaivota – Richard Bach