do lugar dos outros

do lugar dos outros

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009



(…)

Paixão inenarrável plena de sustos e refúgios. Em vão, direi cardumes iridescentes e velozes, o emaranhado de vibráteis remos minúsculos em seus flancos. A dor indescritível escorada na ausência, a beleza intoxicadora dos sentidos, o véu húmido em teus olhos, a linha inapelável dos lábios. Separam-nos muros de gaze onde esfacelaríamos os dedos, porventura ausentes, ávidos ou tristes, assustados na presença da mão. Inocularia em ti a surpresa do gesto, a delícia de deixar-me escorrer pelos teus contornos, tomada de assalto por nuvens graníticas de ilusões sedimentadas e frustradas, endurecidas pelo tempo redutor.
Poderia abandonar-te junto de nardos, confundido em sua brancura ou outra cor, em evanescências múltiplas, e nelas incluiria o odor de um corpo adormecido tingido de desencanto, o rosto enfeitado de cristais inesperados.
Como rio surdo à própria passagem, devoras a distância fluida e contornas pequenas ilhas solitárias, afagando-as e afogando-as na brandura irresistível de abraços densos. Teimo em divisar os pés dos deuses, sempre os escondem entre floras estranhíssimas; dos lábios talvez lhes pendam luas pequenas em quarto minguante mostradas no avesso de si.
Gostaria de narrar a dor, desmontar o medo, contudo cavalgo em seu dorso: as mãos esfaceladas claudicam.
Flutuo no silêncio, imponderável, na pretensão do sopro, diviso-me submersa no desejo, esbracejante e frágil, ansiosa como afogado: aguarda-me uma praia e não sei se distinguiria os teus ombros idênticos a fluidas muralhas, ausentes de besteiros e despidas de pequenas ervas tenras e frágeis, trama de tapete irresistível.
Tudo o mais seria paixão inenarrável, desabitada, com as marcas de todas as dores e prazeres, deixadas por outros nómadas, sedentos de paisagem como tu. Assim eu.
Os deuses entenderam atribuir aos homens a dor como alimento indispensável, mesmo que pelo seu contrário. O prazer transborda, afoga e desaparece, absorvido pela presença insubstituível do corpo, pele, ou na ausência cantada, vibrátil, forjada em presságios: assim o regresso fatigado, ou insofismável refúgio.

(…)

Filomena Cabral – Elegia para um corpo adormecido

3 comentários:

pin gente disse...

teimosamente sofredores...

Unknown disse...

de quando é este livro?... tinha saudades de ler a Filomena Cabral:)

tchi disse...

...ou em repouso