do lugar dos outros

do lugar dos outros

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009



Regressas pelos espelhos abraçado à névoa de um tempo breve, aproximas-te da superfície, contemplo o rosto emergente, nenúfar lançado no vórtice de círculos concêntricos; recordo um perfume.

Necessário seria conheceres evanescências incrustadas na porta sólida da memória: e sempre me detenho no umbral. Como explicar a recordação de ti, de nós sabemos sempre pouco, nada de nossas auras, eflúvios, deles nos falariam outros quase sempre mudos ou desinteressados. A avidez, atenta, com dedos longos arrepanha, puxa para si, sortilégios abandonados por complacência, selecciona-os, guarda-os como avarento para possibilitar-se pequenas trocas, comércio mesquinho com os que experimentam fome de nós. Por ela te recordo, olho, inebrias, inquietas.

Os espelhos de nada sabem na superfície lisa.

Ter-se-ão agitado quando mergulhamos neles as nossas imagens enlaçadas, retido o nosso olhar? Dois espelhos venezianos, distanciados de uma parede a outra parede, trocaram-se imagens em jogos de eternidade, nada mais. A fragilidade habita os espelhos, em nós se enreda, por isso te digo, Amado, o tempo urge, passa, goteja e engana. Pensa clepsidras, relógios de sol, analisa atento urgências e desvarios, medo e fuga: submete-os.

Aguardarei, Amado, a hora em que os espelhos parecem negros e fundos como cisternas, e experimentarei o queixume, talvez regresse o eco de palavras escutadas em ressonâncias doces, e sofro a tentação de destruí-los para ver-te em mil reflexos. Lanternas na noite, doem-me os olhos na intermitência: se o desespero me ergue as pálpebras, a tristeza neles me pousa os dedos de seda.

A claridade vai alterando o cenário: vejo a cadeira onde sentado sorriste; ajoelhada descalcei-te.

(que dizer da Morte para além do luto, dos sinais visíveis ou risíveis, dela nada sei, sim do silêncio-dique, de torrentes de palavras sempre desviadas de seu curso, nunca em ti desaguando.)

Atravesso desertos, Amado, não os que atravessas; assim, o desencontro.

Filomena Cabral - AMATUS