do lugar dos outros

do lugar dos outros

domingo, 28 de setembro de 2008



SONO


adormeci

de cabeça

traída

e acordei

com o coração

magoado


só há uma

palavra

luminosa

que se deixa

em silêncio

o grito


no outono o vento

varre as páginas

aos pés de um livro


as gaivotas

são gavetas

de abrir e fechar

as ondas do mar


o amor é passar

a vida inteira

a amar-te

do outro lado

do mundo

e cara a cara

já não ter força

para dizer

amo-te



Só cá vim ver o sol – Joaquim Castro Caldas


quarta-feira, 24 de setembro de 2008



casa

durante a noite
a casa geme agita-se aquece e arrefece
no interior frio do olho da tua sombra sentada
na cadeira aparentemente vazia

esperas acordado sem sono
que a temperatura da casa funda
com a temperatura incerta do mundo
depois
escreves exactamente isto: o horror dos dias
secou contra os dentes – e rouco
dobrado para dentro do teu próprio pensamento
ferido
atravessas as sílabas diáfanas do poema

levantas-te tarde
atordoado
para extinguires o lume ateado
junto à memória da casa – respiras fundo
para que o gelo derreta e afogue
a vulgar noite do mundo

olhas-te no espelho
atribuis-te um nome e um corpo um gesto
dormes
com a árvore de saliva das ilhas – com o vento
que arrasta consigo esta chuva de fósforo e
estes presságios de tranquilos ossos


Horto de Incêndio – Al Berto

domingo, 21 de setembro de 2008

«Deixa-me entrar na tua casa, sentar no teu sofá e chorar dias seguidos, sem parar, sem ter que parar, sem limpar as lágrimas alguém pode ver, sem disfarçar a dor, sem medo de ficar com os olhos inchados, o rosto disforme. Não tens que compreender nem te afligir. Sou só eu a ser aquilo que sou em certos dias da vida – inconsolável. Não quero o teu lenço, obrigada, nem o teu ombro, nem água, apenas chorar sentada no teu sofá, chorar no teu cenário, manchar a tua normalidade, gritar dentro dela, fazê-la tremer um pouco. Chorar também por ti que não choras e é preciso de vez em quando. Nem te emocionas, apenas te ris e te preocupas e és malevolamente bom».

Histórias Improváveis – Ângela Leite

terça-feira, 16 de setembro de 2008

SÚPLICA

Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti, como de mim.

Perde-se a vida, a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria…
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz, seria
Matar a sede com água salgada.


Câmara Ardente – Miguel Torga

terça-feira, 2 de setembro de 2008

(…)

Notável é o estado do que não sente a tentação daquilo que não faz; não o estado do que é tentado e renuncia. Em termos realistas, o primeiro é a paz, o segundo é a tortura. Os heróis podem falar à vontade. Sofrer é uma estupidez.

(…)

Começo a fazer poemas quando a partida está perdida. Nunca se viu que um poema tenha modificado as coisas.

(…)

Tentação do escritor

Ter escrito qualquer coisa que te deixe como um fuzil que acaba de ser disparado, ainda abalado e quente, vazio de ti próprio, mas também aquilo que suspeitas e supões, e os sobressaltos, os fantasmas, o inconsciente – tê-lo feito à custa de uma longa tensão, com uma prudência feita de dias, tremores, bruscas descobertas, e fracasso, e centralizando a vida neste ponto – dar-se conta de que tudo isto nada é se um sinal humano, uma palavra, uma presença não o acolhe, não o aquece – e morrer de frio – falar no deserto – estar só, noite e dia, como um morto.

(…)


Ofício de Viver – Cesare Pavese