do lugar dos outros

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sábado, 9 de maio de 2009

O destino

Diria facilmente que o destino é uma imagem retirada do domínio geográfico, o da separação das águas – o famoso continente dividido a partir do qual, nos Estados Unidos, certas águas partem para o Pacífico e outras para o Atlântico. Por essa divisão, num determinado momento, dois elementos separam-se irreversivelmente, segundo parece, e não mais voltarão a juntar-se. A separação é definitiva. Qualquer coisa ganha forma de existência, qualquer coisa não a toma – e o que não nasceu ao mesmo tempo tornar-se-á noutra coisa, e assim permanecerá.
O destino seria uma forma de separação definitiva e irreversível. Mas uma espécie de reversibilidade que faz com que as coisas separadas permaneçam ainda cúmplices. O ultramicrofísico fala ao mesmo tempo da separabilidade e da inseparabilidade das partículas. Para lá de como se afirmam, e muitas divergem definitivamente, cada partícula permanece ligada e conectada à sua antipartícula. Não saberei levar muito longe esta comparação, mas sem dúvida que ela nos dá bem conta do que se revela como destino na tragédia, onde é a forma do que nasce e do que morre sob o mesmo signo. E o signo que conduz à vida e à existência é também o mesmo que conduz à morte. Portanto, será sob o mesmo signo fatal que as coisas começam e acabam. É o sentido dessa célebre história que é a morte em Samarcanda… Na praça de uma cidade, um soldado vê a morte fazer-lhe um sinal, fica cheio de medo, vai ter com o rei e diz-lhe:”A morte fez-me um sinal, eu fugi para o mais longe que pude, fui ter a Samarcanda”. O rei convoca a morte para lhe perguntar porque tinha amedrontado o seu capitão. E a morte responde-lhe:”Não lhe quis meter medo, mas queria apenas lembrar-lhe que esta noite temos encontro em Samarcanda”. O destino revela assim uma forma de certo modo esférica: quanto mais se distancia de um ponto, mais dele se aproxima.
O destino não tem a bem dizer certas “intenções”, mas por vezes temos a impressão de que enquanto se desenrola uma vida de glória e de sucesso, em qualquer parte, obscuramente, um dispositivo trabalha ao contrário e faz escurecer, de forma imprevisível, a euforia no drama. O acontecimento fatal não é o que se pode explicar por diversas causas, é antes aquele que, num dado momento, contradiz todas as causalidades, que chegam de algum lado, mas possuem esse destino secreto. Assim, podemos encontrar certas causas na morte de Diana e procurar reduzir o acontecimento a essas causas. Mas trata-se sempre de um álibi convocar as causas para justificar os efeitos: não se esgotará dessa forma o sentido ou o não-sentido de um acontecimento. Ora, neste caso, o que constitui o acontecimento é um retorno do positivo em negativo, essa mudança que faz com que, quando as coisas se mostram muito favoráveis, tornam-se funestas, como se despontasse em silêncio uma força sacrificial colectiva. O destino é sempre o princípio de reversibilidade em acto. Neste sentido, diria que o mundo nos pensa, não através de uma forma discursiva, mas ao invés, contra todos os nossos esforços para o pensar a seu respeito. Cada um de nós poderá encontrar facilmente alguns exemplos, porque mesmo nas próprias coincidências existe toda uma arte. Quando a psicanálise fala de lapso, de substituição de palavras como a palavra espírito, isso deriva também de uma arte da coincidência: num dado instante existe uma sedução estranha entre os significantes e é isso que torna psíquico o acontecimento.
Mas eu imaginaria facilmente, como o oposto desse universo por inteiro informatizado, que nos permite ver ou prever, um mundo em que não houvesse mais coincidências. Um mundo assim não seria um mundo do acaso e da indeterminação, mas um mundo do destino. Sim, todas as coincidências se revelam de alguma forma predestinadas e impor-se-iam ao destino, ao que tem uma clara finalidade, o destino, ou seja, o que possui um destino secreto, uma predestinação, sem um sentido religioso. A predestinação diria: determinado momento está predestinado a um outro, esta palavra a uma outra, como num poema em que sentimos que as palavras tiveram sempre tendência para se juntarem.
Do mesmo modo, na sedução existe uma forma de predestinação: entre o feminino e o masculino, não penso que haja apenas uma relação diferencial, mas existe também uma forma de destino. Estamos sempre destinados ao outro, é uma troca, uma forma dual e não, contrariamente à concepção que geralmente se tem, um destino individual. O destino é essa troca simbólica entre nós e o mundo que nos pensa e nós pensamos, em que têm lugar essa colisão e essa colusão, essa telescopagem e essa cumplicidade das coisas entre si.
Reside aí pois o crime e a dimensão trágica. A punição é infalível: existirá uma reversibilidade que fará com que alguma coisa de si seja vingada. Canetti declara:”A vingança não é só o desejo de a querer, mas ela far-se-á e faz-se automaticamente pela reversibilidade das coisas”. Tal é a forma do destino.

Jean Baudrillard – Palavras de Ordem

1 comentário:

Unknown disse...

Conheço o autor, mas não este livro e só agora tive tempo para ler o excerto. Fiquei com água na boca:)...
tanto mais que há coisas que acho que só no contexto poderei perceber.
obrigada pelo aperitivo, zé!