do lugar dos outros

do lugar dos outros

domingo, 31 de maio de 2009

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Dois corpos.
Dois corpos não carecem de mais do que da fugidia linguagem dos sussurros, dos beijos que eriçam a pele, dos arquejos que preparam a doce deflagração de um amplexo. O idioma topográfico da epiderme transpirada é o único que importa – o único que é preciso dominar quando não se trafica mais do que o amor. Que diferença faz se esses dois corpos não são capazes de se entender plenamente utilizando o vago código das palavras? Que importa a gramática de raiz latina quando duas bocas estão demasiado próximas para que qualquer vocábulo possa ser dito?
Será esta comunicação sem regras aquilo a que chamam paixão? Será o verdadeiro amor aquele que as palavras não macularam ainda? Sabem estes amantes que todo o tempo do mundo é mais tempo do que uma eternidade? Que ao dizerem “para sempre” não exprimem mais do que a fugacidade de um fósforo que já começou a arder?

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Que magia fez com que nos amássemos? Que poderosa vibração nos atirou para a temerária fronteira onde descansam os deportados da terra onde se não pode amar de mais, onde se não crê na possibilidade de amar excessiva, insanamente. Lembras-te? lembras-te de ter dito que não há outro modo de gostar que não seja este, desabrido, e que não acredito que ao resto se possa chamar amor? Que só ama quem gosta à maneira antiga, fora de moda; os que escrevem cartas, os que cultivam olheiras, os que sofrem loucamente e são capazes de morrer de amor. Tu sorrias. Sorrias com aquele teu sorriso leve, feliz e pálido – sorriso de quem sabe que toda a felicidade é passageira, de quem pudesse ler no pouco que dizia o muito que queria dizer.

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Inevitável. A palavra certa é inevitável e lembro-me que foi essa a palavra que me ocorreu enquanto te abraçava e tu me abraçavas a mim. Era forçoso que assim fosse, não porque o quisesses tu ou o desejasse eu. Não porque não te amasse, ou porque não me quisesses tu. Simplesmente tinha de acabar, de uma forma ou de outra e, sendo assim, antes terminasse com um abraço. Mas tinha que acabar. São coisas que não se explicam, ou que, tendo explicação, não podem justificar-se recorrendo às escorreitas equações da lógica. Eu amo-te, tu amas-me; logo: separámo-nos. Tu vais e eu fico. Sofres tu e eu sofro também, porque tem mesmo que ser assim e não podia ser de outra maneira. E, se calhar, tinhas razão – o amor é mesmo para os parvos.

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Dizias que
- Quando penso em ti vejo-te com a cabeça pousada nos meus joelhos, a olhar para mim com olhos grandes. Às vezes tens os olhos fechados e estás a dormir, mas o que interessa é que é assim que eu penso em ti: com a cabeça pousada nos meus joelhos, quieto, enquanto passo a mão, devagar, pela escova mole dos teus cabelos.
Lembras-te?
O meu cabelo já não é uma escova mole. Não te direi sequer, como então, que a sinceridade dos meus sentimentos é uma coisa passageira. Apenas que ainda me agrada a ideia de ser recordado assim. Que ainda sou, se me quiseres, o teu
- Piú grande amore del mondo.
Lembras-te?
O meu cabelo já não é uma escova mole. Mas eu sou um velho parvo, amor.


Manuel Jorge Marmelo – O Amor é para os parvos

sábado, 30 de maio de 2009

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Era uma mulher que estava dentro de uma sala muito branca.
Ouviu: - Não fujas. Não esqueças.
Era uma mulher lívida de medo de não conseguir esquecer.


Filipa Leal - A INEXISTÊNCIA DE EVA

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domingo, 24 de maio de 2009







sábado, 9 de maio de 2009

O destino

Diria facilmente que o destino é uma imagem retirada do domínio geográfico, o da separação das águas – o famoso continente dividido a partir do qual, nos Estados Unidos, certas águas partem para o Pacífico e outras para o Atlântico. Por essa divisão, num determinado momento, dois elementos separam-se irreversivelmente, segundo parece, e não mais voltarão a juntar-se. A separação é definitiva. Qualquer coisa ganha forma de existência, qualquer coisa não a toma – e o que não nasceu ao mesmo tempo tornar-se-á noutra coisa, e assim permanecerá.
O destino seria uma forma de separação definitiva e irreversível. Mas uma espécie de reversibilidade que faz com que as coisas separadas permaneçam ainda cúmplices. O ultramicrofísico fala ao mesmo tempo da separabilidade e da inseparabilidade das partículas. Para lá de como se afirmam, e muitas divergem definitivamente, cada partícula permanece ligada e conectada à sua antipartícula. Não saberei levar muito longe esta comparação, mas sem dúvida que ela nos dá bem conta do que se revela como destino na tragédia, onde é a forma do que nasce e do que morre sob o mesmo signo. E o signo que conduz à vida e à existência é também o mesmo que conduz à morte. Portanto, será sob o mesmo signo fatal que as coisas começam e acabam. É o sentido dessa célebre história que é a morte em Samarcanda… Na praça de uma cidade, um soldado vê a morte fazer-lhe um sinal, fica cheio de medo, vai ter com o rei e diz-lhe:”A morte fez-me um sinal, eu fugi para o mais longe que pude, fui ter a Samarcanda”. O rei convoca a morte para lhe perguntar porque tinha amedrontado o seu capitão. E a morte responde-lhe:”Não lhe quis meter medo, mas queria apenas lembrar-lhe que esta noite temos encontro em Samarcanda”. O destino revela assim uma forma de certo modo esférica: quanto mais se distancia de um ponto, mais dele se aproxima.
O destino não tem a bem dizer certas “intenções”, mas por vezes temos a impressão de que enquanto se desenrola uma vida de glória e de sucesso, em qualquer parte, obscuramente, um dispositivo trabalha ao contrário e faz escurecer, de forma imprevisível, a euforia no drama. O acontecimento fatal não é o que se pode explicar por diversas causas, é antes aquele que, num dado momento, contradiz todas as causalidades, que chegam de algum lado, mas possuem esse destino secreto. Assim, podemos encontrar certas causas na morte de Diana e procurar reduzir o acontecimento a essas causas. Mas trata-se sempre de um álibi convocar as causas para justificar os efeitos: não se esgotará dessa forma o sentido ou o não-sentido de um acontecimento. Ora, neste caso, o que constitui o acontecimento é um retorno do positivo em negativo, essa mudança que faz com que, quando as coisas se mostram muito favoráveis, tornam-se funestas, como se despontasse em silêncio uma força sacrificial colectiva. O destino é sempre o princípio de reversibilidade em acto. Neste sentido, diria que o mundo nos pensa, não através de uma forma discursiva, mas ao invés, contra todos os nossos esforços para o pensar a seu respeito. Cada um de nós poderá encontrar facilmente alguns exemplos, porque mesmo nas próprias coincidências existe toda uma arte. Quando a psicanálise fala de lapso, de substituição de palavras como a palavra espírito, isso deriva também de uma arte da coincidência: num dado instante existe uma sedução estranha entre os significantes e é isso que torna psíquico o acontecimento.
Mas eu imaginaria facilmente, como o oposto desse universo por inteiro informatizado, que nos permite ver ou prever, um mundo em que não houvesse mais coincidências. Um mundo assim não seria um mundo do acaso e da indeterminação, mas um mundo do destino. Sim, todas as coincidências se revelam de alguma forma predestinadas e impor-se-iam ao destino, ao que tem uma clara finalidade, o destino, ou seja, o que possui um destino secreto, uma predestinação, sem um sentido religioso. A predestinação diria: determinado momento está predestinado a um outro, esta palavra a uma outra, como num poema em que sentimos que as palavras tiveram sempre tendência para se juntarem.
Do mesmo modo, na sedução existe uma forma de predestinação: entre o feminino e o masculino, não penso que haja apenas uma relação diferencial, mas existe também uma forma de destino. Estamos sempre destinados ao outro, é uma troca, uma forma dual e não, contrariamente à concepção que geralmente se tem, um destino individual. O destino é essa troca simbólica entre nós e o mundo que nos pensa e nós pensamos, em que têm lugar essa colisão e essa colusão, essa telescopagem e essa cumplicidade das coisas entre si.
Reside aí pois o crime e a dimensão trágica. A punição é infalível: existirá uma reversibilidade que fará com que alguma coisa de si seja vingada. Canetti declara:”A vingança não é só o desejo de a querer, mas ela far-se-á e faz-se automaticamente pela reversibilidade das coisas”. Tal é a forma do destino.

Jean Baudrillard – Palavras de Ordem

quarta-feira, 6 de maio de 2009

o mergulho de profundidade não deve ser confundido com a introspecção. apesar de o seu objectivo ser o mesmo: o corpo profundo, afundado. o objectivo não é reflectir sobre os objectos submarinos, trazê-los à superfície, para depois os analisar, com os instrumentos. extrovertidos. nas mãos fantasmas; mas afundarmo-nos num leito de destroços. e não contar a ninguém o que vimos. nas planícies. que se prolongam sob a abóbada da pele nocturna. e virmos à superfície por ar. apenas quando ardem os pulmões.

Tiago Araújo - FÓRMULAS