do lugar dos outros

do lugar dos outros

sábado, 28 de novembro de 2009


Bastava-nos amar. E não bastava

Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar

a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.

125 Poemas – Antologia Poética – Joaquim Pessoa

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terça-feira, 24 de novembro de 2009



"Era uma vez... Um mundo" - Prémio Revelação em Literatura Infantil e Juvenil Matilde Rosa Araújo

A história de abertura do livro "Era uma vez... um Mundo", a “Cidade dos Fantasmas Felizes” está destinada às crianças dos 3 aos 5 anos e é um desafio aos sentidos. Apresenta-se a preto e branco e está permanentemente envolvida num jogo de sons, sensações e várias perspectivas e volumes. Da história não digo nada, pois se as crianças de três anos tiverem medo do escuro, rapidamente se apaixonarão por Escurinho e, de algum modo, aplaudirão a sua inteligência. Só quem não conhece o Escurinho é que pode ter medo de fantasmas.O segundo conto deste livro, “Uma cidade diferente”, destina-se aos primeiros leitores (5 aos 6/7 anos). Trata-se de um diálogo entre duas personagens principais, Flora uma fada linda e feliz, e Aurora uma fada linda e antipática. A ilustração desta história conduz o leitor a sentir as emoções das duas frágeis fadinhas. Será que elas conseguirão ajudar aqueles que as envolvem? Aqui a questão do que é realmente importante é colocado através de um desafio que surge em cada fala. Ora pergunto eu, ora respondes tu. Segue-se um conto fabuloso e hilariante, “ Uma cidade de vegetais”. Temos dois protagonistas, os irmãos brócolos Pepe e Pop num conto destinado aos leitores de 7 até aos 8/9 anos. É um conto que aborda a temática da Multiculturalidade e não só. Há uma clara abordagem à sociedade consumidora do fast-food, onde os legumes são postos ao lado do prato. Desta forma, somos levados a conhecer a vantagem dos legumes, embora seja feito de forma indirecta. Também se descobre a importância da diferença e o que pode levar a essa diferença, e ainda se faz uma breve abordagem à problemática ambiental. Com este conto irão viver uma aventura com um desfecho inesperado, pois só quem não conhece Pepe e Pop é que pode não gostar de vegetais. Por fim, o amadurecimento temático surge em forma de conclusão com “Safi e os ladrões de cavalos”. Temos ou não direito à diferença? Seja de ordem cultural, religiosa, política, geográfica, musical, estética e tantas outras formas que enriquecem o diálogo, a partilha. Estes jovens, talvez por estarem mais próximos dos mais pequenos, enriqueceram substancialmente um tema tão vasto e de uma forma tão simples e inocente, onde alguns adultos se perdem e não encontram a verdadeira essência da partilha e do quanto é enriquecedor sermos todos diferentes.

Paula Viotti

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Obrigada Paula.




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domingo, 15 de novembro de 2009


“Porque a distracção é a parte mais rebelde e a mais insidiosa da nossa condição.

Há uma distância infinita entre a aparição da verdade, a imediata evidência de seja o que for, e até mesmo o seu reconhecimento; quando olhamos a evidência pela segunda vez, já ela está alinhada, classificada, endurecida entre as coisas que nos cercam. Eis porque nós ignoramos ou esquecemos depressa a face do que há de estranho nos factos mais banais: no da vida, da morte.

A memória fácil do homem é apenas a sua recordação. Ela começa para cada um de nós naquilo que desde a infância lhe referenciou a vida. Mas a outra, a memória pura e que é apenas a vertigem das eras, eco de uma voz que transcende os limites do tempo, recuperando-se talvez aí, nesses pontos de referência, instala-nos todavia, porque o momento é de milagre, num passado e num futuro sem limites, reinventa-nos um acorde único, essa música milenária de estrelas e de nada, abre-nos à aparição da vida onde somos um breve ponto perdido, e a memória é assim uma pura vibração para os quatro cantos do mundo, uma pura expectativa de uma interrogação submersa. É então possível vencer a muralha concreta que nos cerca, a realidade imediata, os factos conhecidos ou relembrados, e acordar à distância ilimitada o eco dessa voz que nos transcende.

O sangue que nos aquece e nos inventa a vida, é o ar que respiramos, dá aos sonhos as formas dessa presença invisível de tudo o que nos cerca. Um modo de pensar, de sentir, organiza-se nos limites das raízes indistintas, transforma-se aí obscuramente, enquanto as nossas mãos distraídas continuam a moldar o pó dos sonhos mortos. Somos a carne e a presença do todo que nos cerca. As células vivas de um espírito que não morre vão expulsando as que já se corromperam. Lentamente, uma evidência nova habita-nos os nervos, corporiza-se connosco, é a nossa pessoa. E um dia descobrimos uma unidade miraculosa, uma certeza de sermos, o puro acto da nossa identidade – no que afirmamos ou negamos.

Só há um problema para o homem, só há uma forma de humanismo: a evidência de uma alegria final nos limites da nossa condição. Até lá, admito que tudo seja provisório e ingénuo.”

Vergílio Ferreira – Carta ao Futuro

sexta-feira, 6 de novembro de 2009



“Diz-me se te dói”


A percepção do que é necessário é um sinal de concessão às razões ordinárias que orientam a vida, que hoje não é mais que uma frenética escalada estética, tendendo à disseminação total de um sentimento de vulgaridade.
A assimilação exacerbada é de tal forma promovida que só conduz a um estado geral de apatia ignorante em detrimento da dúvida na sua natureza de incondicional. Trata-se do aproveitamento de uma sensibilidade extra levado ao extremo, aniquilando toda a hipótese de poder concretizar, por bloqueio face ao desvio do institucionalmente instituído.
A Dor pode ser aceitação, mas também é negação provocada, e ignorante, insensível por excesso.

“Diz-me se te dói” o corpo de escorregares na ladeira do tempo, se o lombo arde da procura constante, se te se rasga o nervo da pergunta. Tudo o que te poderei fazer é expor-te mais um ponto curvo na distância abrupta.
Colher palavras na estação quente não é um desporto, carregar a interrogação como ferramenta do sangue não cria músculos de mostrar. Se dói – e dói sempre mais – no escuro da incógnita, observa e aprende. Transporta e ergue-te na Vida que vai fugindo e pela qual perguntas.
A Dor não se suporta, fere-se no átrio do poema para que caia morta. Dela escorrerá a tua máscara e o calor do Outro, ultrapassada a pena e a comoção, armando-se a voz com a compaixão da força. Nasce todos de uma só vez e inspira. Não fujas à Dor, combate-a. Como se combatesses uma ferida na escrita que te faz doer. Porque nenhuma palavra é possível se a dor não abrir o teu pensamento ao que está a ser escrito. Sabes que o tempo se consome à temperatura da tua própria memória. Um tempo tecnológico que controla a acção criativa e a condiciona segundo as regras dos limites. Uma história indesejável, um poema distorcido por excesso de aquecimento mental, como se te queimasses na barra incandescente do tempo que demoras a pensar.
Escrever é uma cabeça enfiada num buraco. O que tu sentes é a pressão tóxica que te transporta de palavra em palavra num sufoco infernal que significa toda a escrita. Tento entrar nesse forno da tua imaginação. Esse espaço contemplativo que não suporta outra presença que não seja o teu próprio volume de inspiração. Em todo o caso a dor é uma inutilidade quando a estrutura do escrito não evoca nenhuma forma de segurança criativa.
Por outro lado, a escrita é um falhanço em todos os sentidos quando a dor não passa de uma dissimulação que procura no acto de escrever uma forma de utilidade. No entanto, escrever é ocultar metade do que se escreve. Ou ainda: que metade do teu corpo é a escrita que o teu corpo não escreve?

Sulscrito
Julho de 2008
Revista de literatrura