do lugar dos outros

do lugar dos outros

sábado, 19 de dezembro de 2009


NATAL, E NÃO DEZEMBRO

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido…

Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave…
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.


David Mourão Ferreira – Obra Poética

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sexta-feira, 18 de dezembro de 2009


L`ALLIANCE

Définitivement ils sont deux petits arbres
Seuls dans um champ léger
Ils ne se sépareront plus jamais.


A ALIANÇA

Eles são para sempre duas pequenas àrvores
Isoladas numa planície leve
Nunca mais se separarão.

Paul Éluard – Últimos Poemas de Amor

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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009











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Não é poema

não se escolhe: sente-se

um diamante vivo respira no centro do meu peito
sentes?
as suas faces espelhos onde me vejo
órgão rosto jóia
interrompem o ruído de uma maça trincada
que caiu súbita ao chão –

lembra-me que já fui carvão
cruz pregos martelo

sentes o hálito dos anjos?
aproxima-te
meçamos a voltagem dos metros sacros
entre golfadas

desejo-te como só as pedras:
rubra é a fenda
onde urge o magma
lava emerge à tona das nossas bocas
as carótidas dançam nas nossas bocas

não escolhi: sinto

reordenas todos os meus nomes
polindo todas as faces do diamante
com uma rosa dentro
enches-me o altar de frutos ternos
incandescentes rebentos brotam
constelações puras descem
… com harpa tão perto

de ouro se tecem as moléculas que respiramos
para polirmos mais diamantes

e assim o mundo adormece
em crepúsculos dourados

não penses


Suzana Guimarães

cràse - revista de literatura emergente – nº 0

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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

(…) de repente, o caixão estremece, uma sombra levanta-se e caminha, sonâmbula, sai do quarto pela porta desenhada na parede.
o silêncio é definitivo.
eis o sofrimento da boca queimada pelo sarro oceânico.
a dor invadia-te. um cristal flutua no enxofre de remotas cidades.
sentias a tua mão abrir a porta desenhada.
sempre viveste em resíduos de cidades, ruínas da pele, finos cordéis de terra fértil, mistérios…

sentias uma feroz necessidade de ter medo, e pela casa atravessada de ecos, de lumes, respiravas. respiravas o ar insalubre do próximo porto.

permanecemos aqui, neste quarto, onde a escuridão é eterna claridade. fora deste lugar nunca viste o mar.
mas tudo isto se passou noutro tempo, noutro lugar. e a tua boca deixava na minha um travo de asas salgadas…
breves nuvens. o entardecer sobre o corpo estendido na erva fresca do sonho. abrias nas pedras fulvas da praia um sítio para esconder a paixão.
cansei-me de te sonhar. cansei-me do sangue e da chuva, da memória dessas rotas difíceis.
donde te escrevo apenas uma parte de mim ainda não partiu.
encosto a alma à quilha do navio. deixo-me ir no vaivém das marés, e da fala.
a noite singra a pele.
e tu escondias a cara num pano branco e quando fitavas as mãos eu sentia medo de um deus.
estávamos sentados à sombra dos tamarindos. ouvíamos uma voz e não sonhávamos.
nenhum de nós sabia se o sonho, ou a morte, nos conduziria a algum porto de felicidade.

não me lembro o que aconteceu a seguir.
a noite deixava-se habitar por um silêncio escorregadio.
veio-me então ao pensamento o grande porto do sul onde aportaras e dizias ter sido feliz.
as horas começaram a cair umas sobre as outras, iguais, sem frémito, melancólicas.
quando te digo que vou de novo partir, perguntas-me: morre-se porquê?

caminhamos em direcções opostas. caminhamos sem destino pela cidade.
a febre aniquila-nos.
existem Índias por descobrir, no segredo da noite dos nossos desastres.
caminhamos neste espaço de penumbras e de incertezas – onde a fala já não cintila e as palavras são de cinza.

sobre as tuas mãos a sombra de um corpo, ou de um navio. o silêncio das viagens cumpridas. e no meio deste silêncio uma ideia de voz, uma treva agarrada à memória.

foi então que dei por mim a existir para lá da tua morte, como se asfixiasse. mas o passado não é senão um sonho. uma brincadeira com clepsidras avariadas e algum sangue.
não vale a pena estar triste.
todas as histórias, todas as mortes, acabam por se apagar.

um barco tremeluz nas cortinas do quarto.
o horizonte é negro. a luz do dia extingue-se subitamente.
as mãos com que te toco, luminoso afogado, não são verdadeiras nem reais – porque o tempo todo talvez esteja onde existimos, embora saibamos que nesse lugar nunca houve tempo nenhum.

O Último Coração do Sonho – Al Berto