do lugar dos outros

do lugar dos outros

sábado, 29 de dezembro de 2007

(…)

Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas invisíveis.

(…)

Livro do Desassossego – Fernando Pessoa

nota: este seria o livro que eu levaria comigo para uma ilha deserta.


sábado, 22 de dezembro de 2007

«O fim dos dias é não fazer nada. A inércia contemplativa é preferível a tudo. Viva o subterrâneo! Conquanto eu inveje o homem normal, até à última gota da minha bílis, quando o vejo tal como é, renuncio a ele (embora não deixe de o invejar). Não! Não! O subterrâneo vale mais! Lá, ao menos, pode-se… cá estou eu a mentir outra vez! E minto porque sei, tão claramente como «dois e dois são quatro», que não é o subterrâneo que vale mais, mas qualquer outra coisa a que aspiro, sem conseguir descobrir. Vá para o inferno o subterrâneo!
Se eu pudesse ao menos acreditar numa única palavra das que estou escrevendo! Juro que não creio em nada, nada do que estou afirmando. Ou antes, talvez acredite um bocadinho, mas sinto no entanto que minto como um dentista.
- Mas então para que é que escreveste isto tudo? Perguntam vocês.
Gostava de saber o que me diziam se eu os fosse visitar ao subterrâneo onde tinham passado quarenta anos… pode-se lá deixar um homem sozinho9 e sem fazer nada!»


In A Voz Subterrânea, de Dostoïevsky

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O meu tio retirou a máquina fotográfica do seu estojo, fez experiências contra o sol, fechou os olhos, tapou os olhos com a pala do boné, andou às arrecuas, para os lados, correu, ajoelhou, e depois, finalmente, mandou-me que o olhasse.
«Mas antes colhe um ramo de margaridas!»
Colhi-as, fiz um ramo, olhei para ele contra o sol, de lado, sentada no meio das flores, de perto, de mais longe, com e sem chapéu, e quando cheia de soberba por me sentir rainha, olhei de três quartos, com a boca unida, cheia de silêncio, o meu tio gritou.
«Isso, isso, não te mexas, Greta Garbo!»


A Instrumentalina, de Lídia Jorge

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Numa máquina projectada para poupar futuro,
numa máquina concebida para gastar passado,
o maquinista opera no presente
num exercício de esgotamento do tempo
inexorável e transcendente até se fundir
na vertigem do esgoto.
Wolf é só mais um de nós no processo só
de passar a ser menos um.


A Erva Vermelha, de Boris Vian

domingo, 9 de dezembro de 2007

«Uma barragem contra o pacífico poderia ser, também ainda hoje (1988), apenas uma visita guiada aos escombros das propagandas coloniais com que se encheram as paredes da Europa no fim do séc. XIX e na primeira metade do séc. XX para os deserdados e os desiludidos dessa mesma Europa, os que simplesmente procuravam (onde?) o seu quinhão da herança de espaço e mundos novos, ou tão só um lugar seu, onde viver e trabalhar, um canto da planície, entre a floresta e o Pacífico, só com o sol por cima e hectares de terra fértil a perder de vista, onde apenas haveria que produzir, criar uma família (e, naturalmente, enriquecer) sem problemas nem políticas, sem a sensação de desespero e asfixia das metrópoles; para isso, segundo Marguerite Duras, bastava a embriaguez causada pelas leituras de Pierre Loti.
Sim, este romance poderia muito bem ser essa visita guiada… se antes de mais não fosse a evocação daquelas vidas jovens que, no momento de tomarem posse de si e da terra, já lá na colónia, face à monstruosidade insensível do Pacífico e à transparência mesquinha das suas existências de «brancos pobres» sem horizontes, mais não possuem entre mãos e no corpo do que a raiva surda, que só jovens que batam com a cabeça contra um muro tão duro e tão pouco sólido como o Pacífico podem conhecer, uma raiva que é surda porque não há onde nem a quem reclamar contra a fraude.

Sequência a sequência, neste seu primeiro grande romance, Marguerite Duras dá-nos – como quem recusa a perda dos sonhos de amor e vida dos seus anos juvenis na Indochina e precisasse de os contar, lembrando-se sempre de mais e mais pormenores, mais factos à medida que o passado se perde, para que no fim haja aquilo a que se chama o presente da memória, o presente do passado -, num fundo tropical de noites, plantações, dinheiro, bailes, álcool, com um gira-discos a tocar a Ramona, enquanto um diamante pode ser ainda um último fôlego, os encontros dos desejos com os corpos, ou tão só a poesia do regresso à ordem natural das coisas».

Uma Barragem Contra o Pacífico, de Marguerite Duras

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

«As pessoas nem poderiam calcular que dor era aquela. Às vezes, ah, quão perto lhe parecia estar do alvo. Quão perto do instante do combate. E então, curiosamente, sentia-se, ou julgava sentir-se, como os pugilistas. Era assim: os dedos das mãos pediam exercício, pediam uso, até pediam violência. E punha-se a esticá-los e a flecti-los, ou a bater com a mão fechada na concavidade da outra mão, como se estivesse nas vésperas de subir ao ring para uma disputa decisiva, contra um último e impiedoso adversário. Corria à mesa de trabalho, afastava os papéis intrusos – perante si apenas a tal dúzia de folhas impecáveis que queriam ser violadas. Vamos a isto, André. Insiste, André. Chora de raiva, se for preciso. Escreve uma vez, outra, mais outra, emenda, rasga, destrói, recomeça – não te deixes vencer. Isto é um combate, André, o teu combate. Sobe ao ring para te medires com o mais duro dos adversários – tu próprio, desencantado e incrédulo.»

O Rio Triste, de Fernando Namora

domingo, 2 de dezembro de 2007

O artista é o criador de coisas belas.
Revelar a arte e ocultar o artista é o objectivo da arte.
O crítico é aquele que consegue traduzir de outro modo ou em novo material a sua impressão das coisas belas.
A mais elevada, como a mais medíocre, forma de crítica é uma expressão autobiográfica.
Os que encontram significados disformes em coisas belas são corruptos sem agradarem, o que é um defeito.
Os que encontram belos significados em coisas belas são os cultos. Para esses há esperança. São os eleitos para quem as coisas belas apenas significam Beleza.
Não existem livros morais ou imorais. Os livros são bem ou mal escritos. É tudo.
A antipatia do século XIX pelo realismo é a raiva de Caliban ao ver a sua cara no espelho.
A antipatia do século XIX pelo romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho.
A vida moral do homem é assunto para o artista, mas a moralidade da arte consiste na perfeita utilização de um meio imperfeito. Um artista não quer provar coisa alguma. Até as coisas verdadeiras podem ser provadas.
Um artista não tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um maneirismo de estilo imperdoável.
Um artista nunca é mórbido. Um artista pode exprimir tudo.
Para o artista, o vício e a virtude são matéria de uma arte.
Do ponto de vista formal, o modelo de todas as artes é a arte do músico. Do ponto de vista sentimental, o trabalho do actor é o modelo.
Toda a arte é simultaneamente superfície e símbolo.
Os que penetram para lá da superfície fazem-no a suas próprias expensas.
Os que lêem o símbolo fazem-no a suas próprias expensas.
O que a arte espelha realmente é o espectador e não a vida.
A diversidade de opinião sobre uma obra de arte revela que a obra é nova, complexa e vital.
Quando os críticos divergem, o artista está em consonância consigo próprio.
Podemos perdoar um homem que faça uma coisa útil desde que não a admire. A única desculpa para fazer uma coisa inútil é ser objecto de intensa admiração.
Toda a arte é perfeitamente inútil.

Do Prefácio – O Retrato de Dorian Grey, de Óscar Wilde