do lugar dos outros

do lugar dos outros

quinta-feira, 27 de março de 2008

















VIDA ESCURA

Tu nunca entenderás o que se passa
Dentro de mim… nem queiras entender!...
Se a formosura é toda a tua graça,
Sê formosa, que é esse o teu dever.

Não és feliz? Não sei o que te faça!
Mas que pensarás tu, se te disser
Que eu sou mais venturoso na desgraça
Do que tu na alegria o podes ser?!

Que nos importa estar na vida sós,
Mercê da falha de uma criatura?!
O que é preciso é não falharmos nós.

Não tentes entender-me o coração…
Só podem ver na minha vida escura
Olhos acostumados à paixão.


Fausto Guedes Teixeira – O Meu Livro (2ª parte)

domingo, 23 de março de 2008

Princípios necessários para calar

1. Só devemos deixar de estar calados quando temos alguma coisa a dizer que valha mais do que o silêncio.
(…)
3. o tempo de calar deve ser o primeiro por ordem; e nunca saberá falar bem aquele que não tiver aprendido antes a calar-se.
(…)
7. Quando se tem uma coisa importante a dizer há que prestar uma atenção especial: devemos dizê-la para nós próprios e, após esta precaução, dizê-la outra vez para que não tenhamos que nos arrepender quando já não formos senhores de reter o que declarámos.
(…)
13. Por mais tendência que se tenha para o silêncio, devemos sempre desconfiar de nós próprios; e se se sentir demasiado desejo de dizer uma coisa, tal será muitas vezes motivo suficiente para nos determinar a já não dizer.
(…)

Joseph Antoine Toussain, abade Dinouart (1716-1786), eclesiástico “mundano” e polígrafo, escreveu sobre os mais diversos temas, sobretudo acerca das mulheres. Em 1746, publicou Le Triomphe du Sexe que lhe valeu a excomunhão.



Joseph Antoine Toussain – A Arte de Calar

quarta-feira, 19 de março de 2008






















MENINAS

As meninas são todas como eu:
A guardar astros que serão bordados,
A recolher os olhos deslumbrados
Depois duma viagem pelo céu.

E vestem blusas para esperar a tarde
Que há-de surgir ao fundo da vereda
E crispam dedos de sonhar a seda
Que a tarde trouxe e na cantiga arde.

Fincam braços no chão do parapeito
E debruçam o corpo para a lua
E temem vultos negros pela rua
E sentem fogo a iluminar-lhe o peito.

E deitam-se nas camas encantadas
E olham luar correndo nas campinas
E são felizes porque são meninas
E porque a vida as vai fazer mudadas.


Antologia Poética - Natércia Freire

domingo, 16 de março de 2008























- A minha mão recusa-se a escrever um novo livro. Você substituí-la-á.
A sua mão direita abandona a secretária sobre a qual repousava, ergue-se na tua direcção: os dedos tremem num esforço para se fecharem sobre a palma, em vão. Uma gaivota paralisada, que mantém por instantes o seu voo hesitante e vai depois esconder-se no bolso das calças brancas.

Donafugata - J. M. Laclavetine

sexta-feira, 14 de março de 2008


O PONTO

Mínimo sou,
Mas quando ao Nada empresto
A minha elementar realidade,
O Nada é só o resto.


Poemas- Reinaldo Ferreira

segunda-feira, 3 de março de 2008

Se escrevo não é para procurar a minha voz
a minha voz está em toda a parte embora não a ouça
É sempre precisa uma palavra como quem acende uma lâmpada
mesmo que seja apenas para iluminar uma página branca

Talvez só o leitor descubra a terra das palavras
e a voz que não é a minha como a voz do outro
Só ele talvez sinta a ferida que em mim não dói
porque escrever é sempre ir além do que se sente ou não

Não escrevo para ascender ou mergulhar no fundo
mas para evitar uma queda ou atolar-me num charco
Se o mundo é composto de apelos sufocados e vertiginosas linhas
quando o escutamos nada mais ouvimos do que o rumor da ausência
e não sabemos se ela é a dimensão do silêncio
ou a lentidão alheia do deserto


As Palavras - António Ramos Rosa