do lugar dos outros

do lugar dos outros

domingo, 2 de agosto de 2009


(…)

Um ano, no natal, Sempere deu-me o melhor presente que recebi em toda a minha vida. Era um volume velho, lido e vivido a fundo.
- «Grandes esperanças, de Charles Dickens…» - li na capa.
Tinha ouvido dizer que Sempere conhecia alguns escritores que frequentavam o seu estabelecimento e, pela ternura com que manuseava aquele volume, pensei que talvez aquele senhor Charles fosse um deles.
- Um amigo seu?
- De toda a vida. E a partir de hoje, teu também.
Naquela tarde, escondido debaixo da roupa para que o meu pai não visse, levei o meu novo amigo para casa. Aquele foi um Outono de chuvas e dias de chumbo durante o qual li Grandes Esperanças umas nove vezes seguidas, em parte porque não tinha outro à mão para ler e em parte porque não acreditava que pudesse existir outro melhor e começava a suspeitar que o senhor Charles o escrevera só para mim. Não tardei muito a ter a firme convicção de que não queria fazer outra coisa na vida que não fosse aprender a fazer o que fazia aquele tal senhor Dickens.
Uma madrugada acordei de rompante, abanado pelo meu pai, que voltava do trabalho antes do tempo. Trazia os olhos injectados de sangue e o seu hálito cheirava a aguardente. Olhei para ele apavorado, e ele apalpou com os dedos a lâmpada nua que pendia de um fio.
- Está quente.
Cravou os olhos em mim e atirou a lâmpada contra a parede, enraivecido. O vidro desfez-se em mil pedaços que me caíram na cara, mas nem me atrevi a arredá-los.
- Onde está? – Perguntou o meu pai com voz fria e serena.
Abanei a cabeça, a tremer.
- Onde está esse livro de merda?
Voltei a abanar a cabeça. Na penumbra, mal vi chegar a pancada. Senti que perdia a visão e que caía da cama abaixo, com sangue na boca e uma dor intensa, como que um fogo branco a arder-me por detrás dos lábios. Ao virar a cabeça vi no chão aquilo que calculei serem dois dentes partidos. A mão do meu pai agarrou-me pelo colarinho e levantou-me.
- Onde está?
- Pai, por favor…
Atirou-me de cara contra a parede com toda a força e o golpe fez-me perder o equilíbrio e abater-me como uma carga de ossos. Arrastei-me até um canto e aí fiquei, encolhido como um novelo, a ver o meu pai abrir o armário e deitar ao chão as quatro peças de vestuário que tinha. Revistou gavetas e baús sem encontrar o livro, até que, esgotado, voltou de novo para junto de mim. Fechei os olhos e encolhi-me contra a parede, à espera de outra pancada que nunca chegou. Abri os olhos e vi que o meu pai estava sentado na cama a chorar de asfixia e de vergonha. Ao ver que eu olhava para ele, saiu a correr pelas escadas abaixo. Ouvi o eco dos seus passos que se afastavam no silêncio da madrugada, e só quando soube que estava longe é que me arrastei até à cama e tirei o livro do seu esconderijo debaixo do colchão. Vesti-me e, com o romance debaixo do braço, saí para a rua.
Descia um pano de bruma sobre a Calle Santa Ana quando cheguei à porta da livraria. O livreiro e o filho viviam no primeiro andar daquele edifício. Sabia que às seis horas da manhã não eram horas de tocar à campainha da casa de ninguém, mas o meu único pensamento naquele instante era salvar o livro e tinha a certeza de que, se o meu pai o encontrasse ao voltar a casa, o destruiria com toda a raiva que tinha no sangue. Toquei à campainha e esperei. Tive de insistir duas ou três vezes até que ouvi a porta da varanda abrir-se e vi o velho Sempere, de roupão e pantufas, assomar, atónito. Meio minuto mais tarde desceu e veio abrir-me a porta e, quando viu a minha cara, toda a expressão de aborrecimento se evaporou. Ajoelhou-se à minha frente e agarrou-me pelos braços.
- Santo Deus! Estás bem? Quem te fez isso?
- Ninguém. Caí.
Estendi-lhe o livro.
- Vim devolver-lho, porque não quero que lhe aconteça nada…

(…)

Carlos Ruiz Zafón – O Jogo do Anjo

1 comentário:

Unknown disse...

Terrível!

Quer a leitura mais imediata, a história de salvação do livro, quer uma outra leitura, mais ampla, que se pode fazer, da salvação do que(m) se ama...

Não conhecia o autor e fiquei obviamente com vontade de conhecer. Excelente selecção.

Obrigada, zé.