do lugar dos outros

do lugar dos outros

domingo, 23 de novembro de 2008



Da abertura:

“Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo o ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão do mundo. Isso faz da leitura sempre uma re-leitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer, como alguém vive, com quem con-vive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação.
(…)

Do capítulo 2 – nós somos águias!

(…)

“Era uma vez, um camponês que foi à floresta vizinha, apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar num filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rei/a rainha de todos os pássaros.
Depois de cinco anos este homem recebeu em sua casa a visita de um naturista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturista:
- Esse pássaro aí não é uma galinha. É uma águia.
- De facto, disse o camponês. É águia. Mas eu criei-a como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
- Não, retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia este coração a fará um dia voar às alturas.
- Não, não, insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:
- Já que você de facto é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!
A águia ficou sentada sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá em baixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas.
O camponês comentou:
- Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
- Não, tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no tecto da casa. Sussurrou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá em baixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à carga:
- Eu havia-lhe dito, ela virou galinha!
- Não, respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas.
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe!
A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direcção do sol, para que seus olhos pudessem se encher da claridade solar e da vastidão do horizonte.
Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau, kau das águias e ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez mais alto. Voou… voou… até confundir-se com o azul do firmamento…
(…)

Leonardo Boff – A águia e a galinha (uma metáfora da condição humana)

3 comentários:

tchi disse...

E aqueles que não existem...

O que são?

Magnífico livro.

SMA disse...

Que bom encontrar aqui Leonardo Boff sendo que a parábola da galinha e a águia é um original de Anthony de Mello, também ele "ceifado" pela Santa Sé.
Contudo esta obra de Boff tem uma grande importância como um dos construtos teóricos da teologia da libertação
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Deixo-te uma sugestão mais bem recente “Feminismo e Masculino” de Leonardo Boff e de Rose Marie Muraro. A integração da sexualidade e da afectividade numa historia ontológica de castração.
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Porquê ficar junto das pedras quando a nossa essência é do céu?!…
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Bjs obrigada

José Pires F. disse...

Só sobre o parágrafo da abertura: EXCELENTE PENSAMENTO.

Sabes, só pensa assim que percorreu os caminhos. É preciso percorre-los para assim os escrever.

Abraço, enorme.