do lugar dos outros

do lugar dos outros

sábado, 8 de novembro de 2008

Nas palavras de madrugar

há um chão de terras prenhes, roubado à pedra que o tempo mastigou ajudado pelo suor dos homens;

um tempo de sacrifícios indizíveis pela luz ténue das palavras a que nos agarramos, na esperança lícita de interpretar esse tempo que apenas se percebe a espaços, escutando os diálogos entre as brumas matinais e os primeiros raios de sol, ou à tardinha, entre os salgueiros do rio e as oliveiras do monte;

esse monte acariciado pelos dedos do gigante-criador, por onde passam, à ida e à vinda, o ranger das botas e o bater das socas, dos homens e das mulheres que todos os dias sobem e descem o altar, para se darem a essa troca desigual do salgado suor pela vida, do envelhecimento pela recriação dos mistérios do xisto, como se de um sacrifício divino e consentido se tratasse – eis a oração:

às seis e meia da manhã abre-se uma janela, devagarinho, para não inquietar os ruídos de madrugar – os tentilhões e os melros não dão conta e continuam a conversa firme, pardais e tordos cumprimentam-se de galho para galho, no fio telefónico, à escuta de outros segredos, descobre-nos uma pega rabuda, que em silêncio exibe o peito amarelo da sua vaidade;

no entremeio deste olhar, já longe o quanto baste para se perceberem as cores dos lenços e as rugas do tempo, por entre as badaladas da torre sineira, o eco da reza diária traz-nos o caminhar das botas encardidas pelo pó da terra e dos socos esbotenados pela arrogância da pedra - o Alcides, o Balela, o Hernâni e o Moisés, a Rosa de Fátima, a Clotilde, a Aninhas e a Rosinda - , mais atrás, pachorrento mas de cauda em riste, vai o “Perdido” – o cão que alguém deixou, vai para um ror de anos, na borda do ribeiro que passa ao laranjal -, vai como quem faz parte da roga, muito senhor do seu nariz, mas com o faro posto nas côdeas ou nos ossos que restem do “presigo” do pessoal;

é fresco o olhar das manhãs do mês de Maio, traz aromas da terra, já penteada por novos bardos que vestem de verde as velhas cepas, que passam Outonos e Invernos à conversa com as geadas e com os muros húmidos de xisto – pedras acomodadas entre si como laçadas de um pano de renda -,esse trabalho hercúleo da paciência artística, emergente da necessidade de roubar à montanha mais duas leiras de pedra esmagada pelos braços desse tempo;

inspira-se este ar que vem do azul e se mistura com o bafo da inspiração dos montes, que nos entontece com a mesma intensidade com que em Setembro, depois do rio de prata dar lugar ao espelho de águas adormecidas, nos embebeda o mosto que sobe do rio pela calada da noite, embalado pela sinfonia das rãs e das cigarras, enquanto as botas e os socos, manchados pelo sangue da vinha, repousam na soleira do descanso, à espera que o rosário volte ao princípio;

onde os deuses se encontram

há um olhar sobre a pele dos montes, acariciado pela brisa do mosto; mãos nos bolsos e retina saltitante, pousando aqui e ali, ao ritmo dos pensamentos, como se de uma pontuação inquieta se tratasse, à procura da sinfonia que evola da caligrafia dos corpos deitados em ambas as margens, admirando a erecção dos ciprestes ou a nudez dos chorões e dos juncais desenhados na água, onde passeiam as nuvens e as sombras do senado das cepas;

entretanto, a respiração dos sexos ecoa por entre o ruído dos silêncios, escorrentes das coxas e dos seios adormecidos pelo encanto da serpente dourada que desliza entre o xisto esculpido pelo cinzel do tempo, paulatinamente humedecido pelo suor dos homens;

na rumorosa contemplação, ele, ainda de mãos nos bolsos, sente o latejar do sangue a percorrer as artérias da memória que sustenta a existência dos homens que sempre regressam ao xisto das convexas seduções, aconchegados pela manta dos frutos;
imóvel, o olhar lê as palavras que renascem do novo verde, disseminadas pelas luminosidades emergentes da emoção desse abraço:

entretanto, nas encostas de corpos, desenha-se a pauta onde se reescreve a melodia das escrituras do fragmento planetário em que os deuses se encontram, para se embriagarem com cálices de sol.


(parece-nos irresistível este parêntesis - por debaixo deste nosso alpendre há uma ramada de sombras, em cujo arame dois pardais, ainda jovens, se debicam carinhosamente e pipilam qualquer coisa do tipo:
- piu, piu-piu, piriripipiu.
- piu-piu, piriritriririri piu-
o que, traduzido à letra, deverá querer dizer:
- ó meu amor…
- diz, amor meu…)

Agora, Nós – josé braga-amaral

2 comentários:

isabel mendes ferreira disse...

tanto que existe para conhecer....:)


obrigada MJ.

Muito.


gostei tanto.



beijo-te.

tchi disse...

Coincidência ou não, hoje vi o autor deste livro, com a sua boina preta à cabeça, os óculos d ver colocados sobre o nariz e os óculos de ler pendurados ao pescoço.

Este é a sua última obra publicada até então e lançada muito recentemente. Creio estar certa.