do lugar dos outros

do lugar dos outros

domingo, 30 de novembro de 2008

“O encontro com o mundo índio não é hoje um luxo. Tornou-se uma necessidade para quem quer compreender o que se passa no mundo moderno. Não basta porém compreender; trata-se de tentar ir até ao fim de todas as galerias obscuras, de procurar abrir algumas portas – quer dizer, no fundo, tentar sobreviver. O nosso universo de cimento e de ramificações eléctricas não é simples. Quanto mais se pretende explicar, mais ele se nos escapa. Viver por dentro, hermeticamente fechado, seguindo os impulsos mecânicos, sem procurar trespassar estas muralhas e estes tectos, é mais do que inconsciência; é expormo-nos ao perigo de sermos pervertidos, mortos, tragados. Sabemos hoje que não há verdades; apenas há explosões, metamorfoses, dúvidas. Bem entendido, queremos abalar. Mas para onde? Todos os caminhos são parecidos, todos são um regresso ao próprio indivíduo. É pois preciso procurar outras viagens.”

(…)

“ Seria preciso falar desta experiência como se fala, por exemplo, do mar. O mar estava presente, todos os dias com ele convivíamos, víamo-lo, pensávamos nele, mas não sabíamos o que queria dizer. O mar, porém, sabia. Era ele que cercava as cidades, era ele que organizava os pensamentos dos homens, que regulava as suas músicas, os seus quadros e os seus poemas. E não o contrário. Como imaginar uma coisa destas? Quando a gente se servia das palavras da linguagem, e na folha branca as alinhava, não nos dávamos conta de que alinhávamos conchas. E o que um dia se descobre, sem se dar por isso, só por se estar sentado num rochedo diante do mar, é que a experiência dos homens está incluída na experiência do universo. E isto, verdadeiramente, é terrífico, e ao mesmo tempo é aprazível, porque nessa altura muitas palavras surgem, muitas palavras desabam. Quer isto dizer que a linguagem é uma expressão do universo modificada pela boca dos homens, uma linguagem por assim dizer interpretada, e cujo original há-de sempre ficar sem tradução.”

(…)


ÍNDIO BRANCO – J.M.G. Le Clézio

domingo, 23 de novembro de 2008



Da abertura:

“Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo o ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão do mundo. Isso faz da leitura sempre uma re-leitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer, como alguém vive, com quem con-vive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação.
(…)

Do capítulo 2 – nós somos águias!

(…)

“Era uma vez, um camponês que foi à floresta vizinha, apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar num filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rei/a rainha de todos os pássaros.
Depois de cinco anos este homem recebeu em sua casa a visita de um naturista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturista:
- Esse pássaro aí não é uma galinha. É uma águia.
- De facto, disse o camponês. É águia. Mas eu criei-a como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
- Não, retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia este coração a fará um dia voar às alturas.
- Não, não, insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:
- Já que você de facto é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!
A águia ficou sentada sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá em baixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas.
O camponês comentou:
- Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
- Não, tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no tecto da casa. Sussurrou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá em baixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à carga:
- Eu havia-lhe dito, ela virou galinha!
- Não, respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas.
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe!
A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direcção do sol, para que seus olhos pudessem se encher da claridade solar e da vastidão do horizonte.
Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau, kau das águias e ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez mais alto. Voou… voou… até confundir-se com o azul do firmamento…
(…)

Leonardo Boff – A águia e a galinha (uma metáfora da condição humana)

sexta-feira, 21 de novembro de 2008



ANÚNCIO

A expectativa de me fugir um breve instante de respiração. Surpreender-me num ritmo acelerado de corrida de bicicletas perante um coração fraco. Varrer-me o vento na sua simplicidade de falta de palavras. A expectativa desse mesmo instante. O deserto quase-azul escuro dos teus olhos semicerrados. Essa estrada que me espera durante as próximas horas de existência com as canções de um cristalino zumbir de abelhas ao vento. A crina de um incidente. A tua presença absoluta num espaço contíguo. A saída de emergência de uma distância inesgotada diante de uma pedra esculpida com a precisão de segundos de erosão, imensamente terna e dolorosa. O equilíbrio de um corpo numa mente à beira da loucura de ti. Saber os teus dois nomes com a destreza de uma agulha a ferir um braço gentil. O poema, o último de todos, dentro desse sangue adocicado de tardes de Abril. O reencontro dos teus lábios de pássaros verdes. E estas imagens, sobre, sob a retina de um quotidiano laboriosamente impensado sobre a tua ausência presente ou um carrossel de pó a anunciar a nossa chegada.


MANUAL DE COMO DESCALÇAR SABRINAS A MENINAS

Quando descalçares sabrinas terá de ser com procedimentos cinderélicos. Terás de amar os pés, mesmo que partidos ao meio, na destruição dramática dos seus vinte e seis ossos. Todos os pés de vento. Toda a sua minuciosa anatomia de quem quer andar como quem canta. Prever o mais breve e inútil movimento no sistema esquelético. Encontrar-lhe os lírios nas sequelas dos músculos. Dar-lhes corda. Pô-los a tocar sob ameaça de tempestade. Sentar-te na margem dos rios sinoviais e atirar-lhes pedras. Pô-los a pensar sobre os caminhos – dar-lhes caminhos. Encontrar-lhes as faces e beijá-las nas suas destrezas. Retirar com cuidado e deixar pousar o pé sobre o chão.


Ana Salomé - Anáfora

quinta-feira, 13 de novembro de 2008



Minha alma ergueu-se para além de ti...

Tive a ânsia de mais alto

- abri as asas, parti!


Poemas – Judith Teixeira

sábado, 8 de novembro de 2008

Nas palavras de madrugar

há um chão de terras prenhes, roubado à pedra que o tempo mastigou ajudado pelo suor dos homens;

um tempo de sacrifícios indizíveis pela luz ténue das palavras a que nos agarramos, na esperança lícita de interpretar esse tempo que apenas se percebe a espaços, escutando os diálogos entre as brumas matinais e os primeiros raios de sol, ou à tardinha, entre os salgueiros do rio e as oliveiras do monte;

esse monte acariciado pelos dedos do gigante-criador, por onde passam, à ida e à vinda, o ranger das botas e o bater das socas, dos homens e das mulheres que todos os dias sobem e descem o altar, para se darem a essa troca desigual do salgado suor pela vida, do envelhecimento pela recriação dos mistérios do xisto, como se de um sacrifício divino e consentido se tratasse – eis a oração:

às seis e meia da manhã abre-se uma janela, devagarinho, para não inquietar os ruídos de madrugar – os tentilhões e os melros não dão conta e continuam a conversa firme, pardais e tordos cumprimentam-se de galho para galho, no fio telefónico, à escuta de outros segredos, descobre-nos uma pega rabuda, que em silêncio exibe o peito amarelo da sua vaidade;

no entremeio deste olhar, já longe o quanto baste para se perceberem as cores dos lenços e as rugas do tempo, por entre as badaladas da torre sineira, o eco da reza diária traz-nos o caminhar das botas encardidas pelo pó da terra e dos socos esbotenados pela arrogância da pedra - o Alcides, o Balela, o Hernâni e o Moisés, a Rosa de Fátima, a Clotilde, a Aninhas e a Rosinda - , mais atrás, pachorrento mas de cauda em riste, vai o “Perdido” – o cão que alguém deixou, vai para um ror de anos, na borda do ribeiro que passa ao laranjal -, vai como quem faz parte da roga, muito senhor do seu nariz, mas com o faro posto nas côdeas ou nos ossos que restem do “presigo” do pessoal;

é fresco o olhar das manhãs do mês de Maio, traz aromas da terra, já penteada por novos bardos que vestem de verde as velhas cepas, que passam Outonos e Invernos à conversa com as geadas e com os muros húmidos de xisto – pedras acomodadas entre si como laçadas de um pano de renda -,esse trabalho hercúleo da paciência artística, emergente da necessidade de roubar à montanha mais duas leiras de pedra esmagada pelos braços desse tempo;

inspira-se este ar que vem do azul e se mistura com o bafo da inspiração dos montes, que nos entontece com a mesma intensidade com que em Setembro, depois do rio de prata dar lugar ao espelho de águas adormecidas, nos embebeda o mosto que sobe do rio pela calada da noite, embalado pela sinfonia das rãs e das cigarras, enquanto as botas e os socos, manchados pelo sangue da vinha, repousam na soleira do descanso, à espera que o rosário volte ao princípio;

onde os deuses se encontram

há um olhar sobre a pele dos montes, acariciado pela brisa do mosto; mãos nos bolsos e retina saltitante, pousando aqui e ali, ao ritmo dos pensamentos, como se de uma pontuação inquieta se tratasse, à procura da sinfonia que evola da caligrafia dos corpos deitados em ambas as margens, admirando a erecção dos ciprestes ou a nudez dos chorões e dos juncais desenhados na água, onde passeiam as nuvens e as sombras do senado das cepas;

entretanto, a respiração dos sexos ecoa por entre o ruído dos silêncios, escorrentes das coxas e dos seios adormecidos pelo encanto da serpente dourada que desliza entre o xisto esculpido pelo cinzel do tempo, paulatinamente humedecido pelo suor dos homens;

na rumorosa contemplação, ele, ainda de mãos nos bolsos, sente o latejar do sangue a percorrer as artérias da memória que sustenta a existência dos homens que sempre regressam ao xisto das convexas seduções, aconchegados pela manta dos frutos;
imóvel, o olhar lê as palavras que renascem do novo verde, disseminadas pelas luminosidades emergentes da emoção desse abraço:

entretanto, nas encostas de corpos, desenha-se a pauta onde se reescreve a melodia das escrituras do fragmento planetário em que os deuses se encontram, para se embriagarem com cálices de sol.


(parece-nos irresistível este parêntesis - por debaixo deste nosso alpendre há uma ramada de sombras, em cujo arame dois pardais, ainda jovens, se debicam carinhosamente e pipilam qualquer coisa do tipo:
- piu, piu-piu, piriripipiu.
- piu-piu, piriritriririri piu-
o que, traduzido à letra, deverá querer dizer:
- ó meu amor…
- diz, amor meu…)

Agora, Nós – josé braga-amaral

domingo, 2 de novembro de 2008

«Ao romper do dia, apercebeu-se do que a rodeava, do corpo junto do seu; ele dormia, ou pretendia que ela o imaginasse. Obsidiana aconchegou-o no conforto das roupas. Quando acordou, estava só. Estendeu o braço para o lugar vazio e voltou a afundar-se num sono profundo, como se tivesse caído num abismo. Mais tarde, muito tempo depois, anos talvez, afirmaria para consigo deveria ter morrido naquela noite; não a orientaria, nesse aspecto, o negativismo, muito pelo contrário: sublimado o desejo pela ternura, poderia ter evitado a paixão para sempre.»

Obsidiana – Filomena Cabral