do lugar dos outros
quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
SEM VITÓRIA, VIVES COMIGO.
pequena
e carregada.
Só lá fora, onde
as nossas almas ainda estão, na terra de ninguém,
é que se canta. Canta-se
no brilho
daquilo que passou ao nosso lado.
Nem nuvens, nem estrelas – nós
não olhamos para cima.
Chega-te mais, anda:
para que não sopre duas vezes o vento
através da nossa casa aberta.
Paul Celan – A Morte é uma Flor
domingo, 28 de dezembro de 2008
NEVE
Oiço-te na extensão do sono
com dificuldade. O inverno, a neve
que nele havia, arde.
Era tão branco tudo: astros,
árvores, até as aves
que se abrigavam não sei
em que alpendres. E chamavam,
chamavam da brancura da neve.
Nenhum muro, nenhuma porta,
só a voz que chamava, doce
e pequena voz, a querer
partilhar comigo
o inverno, a neve, o mundo
amanhecendo, anoitecendo, branco.
Eugénio de Andrade – Os Sulcos da Sede
segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
«Eram tão lindos, tão suaves os dias femininos ao teu lado. Nesse teu rosto moreno, que me é agora estrangeiro e onde longamente batem as pestanas desses teus embaraços que bem conheço, que são silêncios a eternizar-se entre nós, movem-se sombras, ideias furtivas que não consigo captar.
Quando amassávamos o barro vermelho e ecoavam na tarde sons de lume e o vento cheirava a pão, quando olhávamos juntos, do nosso quarto andar, as estradas cor-de-rosa do crepúsculo, parecia, parecia apenas, que não havia segredos entre nós.»
Violeta e a Noite, de Urbano Tavares Rodrigues
Quando amassávamos o barro vermelho e ecoavam na tarde sons de lume e o vento cheirava a pão, quando olhávamos juntos, do nosso quarto andar, as estradas cor-de-rosa do crepúsculo, parecia, parecia apenas, que não havia segredos entre nós.»
Violeta e a Noite, de Urbano Tavares Rodrigues
domingo, 14 de dezembro de 2008
na suite EPICURE
Tu disseste para eu guardar o silêncio neste quarto. Para que nada dissesse, nem o teu nome. O teu corpo ondulava e eu aceitei a ausência. Disseste para eu nada pedir, para não nomear, não ter nenhuma palavra, nem exclamação, nem sorrisos, para não estar morta também. Para te responder com as mãos, silenciosas, os dedos a baterem-te como a chuva, tão de leve.
Estás suspenso, leve e suspenso e quente, portanto vivo, que surpresa! Só te envolves no berço, sem palavras, como antes delas, com o rosto amado a devolver-te um sinal de reconhecimento. Voltas a fechar os olhos, aninhas-te nos meus braços como se não me visses nunca, como se eu não existisse fora desse abraço por dentro. O meu cheiro como uma palavra acariciando a criança em ti, toda, e a curva da nuca abandonada. O peso tímido da tua cabeça a furar-me a pele, a quebrar-me o peito. Mordes a memória do leite, mexes os lábios, dói-me a secura. Não digo nada, o queixume é já desejo. Tem de ser plano e eterno este tempo, como se a morte pudesse roubá-lo se o dissesse. Não me pedes nada, e nem ousas a violência.
Ocultas tudo para que seja como antes do sono, um mergulho lento, desmembrado, com a aprovação de todos. Os lábios são doces, não procuram, conhecem a felicidade, provam com a língua, provam mais, redondos, enrolados, enormes como o quarto, com a cama que se afunda e nos leva, líquidos, desfeitos um no outro, numa celebração comum, silenciosa, não nomeada. Um abraço sem gestos, só um equilíbrio ténue, frágil.
Escorregamos sem esforço, não sei onde caímos, é a tua memória que nos guia, é o meu silêncio, todo o consentimento e o dom do teu acolhimento para que tudo aconteça longe daqui, sem eu nunca saber onde me levas e vou.
Tu disseste para eu guardar o silêncio neste quarto. Para que nada dissesse, nem o teu nome. O teu corpo ondulava e eu aceitei a ausência. Disseste para eu nada pedir, para não nomear, não ter nenhuma palavra, nem exclamação, nem sorrisos, para não estar morta também. Para te responder com as mãos, silenciosas, os dedos a baterem-te como a chuva, tão de leve.
Estás suspenso, leve e suspenso e quente, portanto vivo, que surpresa! Só te envolves no berço, sem palavras, como antes delas, com o rosto amado a devolver-te um sinal de reconhecimento. Voltas a fechar os olhos, aninhas-te nos meus braços como se não me visses nunca, como se eu não existisse fora desse abraço por dentro. O meu cheiro como uma palavra acariciando a criança em ti, toda, e a curva da nuca abandonada. O peso tímido da tua cabeça a furar-me a pele, a quebrar-me o peito. Mordes a memória do leite, mexes os lábios, dói-me a secura. Não digo nada, o queixume é já desejo. Tem de ser plano e eterno este tempo, como se a morte pudesse roubá-lo se o dissesse. Não me pedes nada, e nem ousas a violência.
Ocultas tudo para que seja como antes do sono, um mergulho lento, desmembrado, com a aprovação de todos. Os lábios são doces, não procuram, conhecem a felicidade, provam com a língua, provam mais, redondos, enrolados, enormes como o quarto, com a cama que se afunda e nos leva, líquidos, desfeitos um no outro, numa celebração comum, silenciosa, não nomeada. Um abraço sem gestos, só um equilíbrio ténue, frágil.
Escorregamos sem esforço, não sei onde caímos, é a tua memória que nos guia, é o meu silêncio, todo o consentimento e o dom do teu acolhimento para que tudo aconteça longe daqui, sem eu nunca saber onde me levas e vou.
(...)
Devia contentar-me de ter areia escondida
nas pregas da carne e de o não saber.
À noite, passo a mão espalmada por toda a cama
e encontro vento e mar no meu lençol.
sempre sorrio desse facto.
Não consigo ainda deitar-me e ficar feliz
sabendo isto tudo.
Um adeus perfeito – Lídia Martinez
sábado, 13 de dezembro de 2008
(…)
O abraço entre a flor e a borboleta é um abraço
doce como o néctar, mas bem curto e breve.
A flor, quieta, espera a chegada da borboleta
e deixa-se abraçar.
A borboleta passa rasando a flor,
acaricia-lhe as pétalas e segue.
(…)
A linguagem dos abraços
não contém quaisquer palavras,
nem é vazia de sentido.
Acima de tudo, o que nós desejamos nela,
é que o nosso abraço seja eterno e infinito.
Michal Snunit – Vem e Abraça-me
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
DIÁRIO À NOITE SUPOSTA
(Primeiro dia)
Lembro-me bem: este poema começava a falar de uma estrela.
Era uma estrela no início da imagem. Uma estrela a fugir-me da possibilidade do verso, a fugir-me do íntimo conforto em que a tinha. Estrela a ferir-se nas mãos, a ferir-me nos olhos, estrela.
(Primeiro dia)
Disseste: vou escrever um livro para te esquecer.
Para te encerrar como um assunto.
Para te matar.
Lembro-me bem: disseste exactamente o contrário
mas hoje custa-me acreditar nisso.
Disseste que nele contarias o nosso amor
porque a literatura tem esta presunção de eternidade
e depois deixaste-me e eu já não me lembro bem por quê.
(Primeiro dia)
Eu não tinha estrutura, não tinha claridade.
Eu não tinha holofotes que chegassem, braços que chegassem.
Eu não tinha luz.
Uma estrela, já se sabe, precisa de luz. Alimenta-se da sua circunferência,
do seu tom periférico. Uma estrela precisa de iluminar.
Foi isso. Foi a minha noite. Foi a minha falta de jeito.
(Primeiro dia)
Disseste: Vou escrever um livro para continuar.
Para continuar sem ti.
Foi isso que disseste?
(Primeiro dia)
O que eu queria mesmo era escrever para me salvar.
Para não ter medo.
Para te perder melhor.
Filipa Leal – O Problema de Ser Norte
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